Liana | Escrevivendo na Pandemia

Pausa Dramática por Liana Padilha

ILUSTRAÇÃO ROBINHO SANTANA 

…Já tive invernos piores.

Em outras épocas, outras vidas. Já hibernei, ensimesmei.

Entrei dentro de mim buscando respostas, explicações.
O que é um fato?
Eu vi, sonhei ou me contaram?
Já parei outras vezes antes. Já mudei de rumo, casa, cidade,
profissão, amor. Só que era a minha vida parada, não o mundo,
não a maior parte do mundo.

Antes sentia uma calma estranha, de estar no olho de um furacão,
onde o entorno gira e você fica parado. 
Agora eu sinto dentro girar e o fora parado.
Mais de 100 dias em casa, meus trabalhos pararam, tenho que
inventar novas formas de sobreviver com doçura.


Um coelho com um relógio me apressa a
 achar uma saída, como se eu fosse Alice e
vivesse num País das Maravilhas.

Mas escrevo e faço música. Posso sobreviver de poesia?
Já tive invernos piores…Quando nem poesia tinha.
Agora não sou eu que estou doente, é o Mundo.

O Mundo grande e maiúsculo lá de fora.
O mundo que brindamos no dia 1 de janeiro.

O mundo que eu pensava conhecer quando o ano
começou.

Não é mais igual.
Nada é igual.
Mas de verdade, nunca foi. Cada dia é único, cada dia é um. E
hoje escrevo isso aqui pra um dia lembrar do dia de hoje.
Vivemos numa ilusão de controle e posse inútil. Numa ilusão de
justiça só pra uns.

Verdades inventadas, devaneios. Bolhas, Ilusões. Mentiras da
noite escura.

Novo normal, anormal. Pessoas que morrem sem se despedir.
Tanta injustiça e ignorância, tanto caos.
E eu tentando viver de música.
Agora espero um norte.

“Future is Now”

 

Hoje, julho de 2020. Descubro que preciso de bem
menos coisas que pensava. E sei que preciso mais que
nunca das outras pessoas.

Ninguém é uma ilha? Ou somos todos ilhas num mesmo
oceano de eventos?
Dias que voam e são lentos em igual proporção.
Dias que parecem infância.
Quando os outros decidem por nós se é ou não seguro
sair de casa.
Trapezista no meio do salto, sem saber onde vai cair.
Sonhei com molho de tomate, muito molho de tomate,
muitos tomates assando no forno.
A cozinha com seus azulejos azul piscina,
tinha virado praticamente uma fábrica de molho de tomate.
Uma piscina de molho de tomate.

 

Durmo feito criança.
Tenho sonhos psicodélicos e banais, os que lembro quase sempre
tem água ou barulho de água. O de ontem tinha muitas cores
fluorescentes, muito verde limão, pink e laranja.

 

…Tenho escutado muito Thundercat
Tenho que dançar mais.
O futuro é agora.

 

Fui uma criança impregnada com a ideia de futuro. Naves
espaciais, viagens no tempo, sci fi.
Achava que viveria um evento planetário, visitas de ETs, ovnis.
Mas nunca imaginei que seríamos atacados por vírus, reais ou
digitais. Bactérias, micróbios, raios, extraterrestres, religiões
mórbidas ou governos perversos.
Nunca tudo ao mesmo tempo. Nem nos meus roteiros mais
loucos.
Vírus, epidemias, caos político, revoltas, violência. Poeira do
deserto, nuvem de gafanhotos, ciclones.

“Future is now, Black Future”
(cantava a banda punk nos anos 80).

Chegamos ao futuro, me parece mais um futuro do passado.
Cheio de vírus que não são seletivos.

Oceanos poluídos, florestas queimadas, índios mortos.

Os vírus são outros.

Vírus que podem te deixar em surto, fazer tremer.
Diminuir tua capacidade pulmonar, destruir seus músculos e
neurônios. Podem roubar teu rg, cpf, assinaturas, imagens,
memórias.

“Sonhos levemente desmanchados… Apertos no nó da garganta.”
Noporn

Quase no final do século passado, um outro vírus, AIDS, matou
vários amigos.
Foi um strike cultural/geracional de fundo inquisitório.
Nunca se culpou tanto as vítimas por uma doença.
A AIDS levou as pessoas mais livres da época.
Jovens, artistas, gays, mulheres e crianças.
Causou uma discussão que fez do Brasil ser durante um tempo,
referência no tratamento.

A AIDS até hoje não tem cura.

 

O que eu penso hoje é onde ficará o amor?
O toque, a presença física, o olhar?
E o impacto disso nas relações pessoais nos próximos anos.
A terra parou, pessoas ficaram isoladas, sem trabalho. Muitas
sozinhas, outras abandonadas.
Sistema de saúde caótico, terceiro setor à deriva, economia
parada.
Arte, a música, o cinema, a literatura e a poesia, tem salvado
muita gente.
Cultura, Shows, Festas? Escolas, bares, igrejas, cinemas,
teatros… Fronteiras fechadas.

O sonho do mundo globalizado desmoronando.
Declínio de todos os impérios. Simultaneamente.

Voos suspensos, viagens canceladas, liberdade
vigiada, máscaras, luvas.

X
Festas online, Sexo online, amor online…enquanto
tivermos conexão em rede.

 

Então eu volto e crio um mundo íntimo de força, como um
escudo protetor.
Fico lá dentro bem serena, com a certeza que vai passar.
Tudo passa sempre.
Crio uma nova história para o dia como eu fazia quando era
criança, e vou.
Umas vezes faço pão, outras poesia.
Já tive invernos piores.
Tenho que tentar entender o tempo e aprender. Os sonhos são
outros
Espero realmente o novo.
Sempre me preparei para o novo.
Espero que todos melhorem.
O mundo falhou e teve que parar, espero que mudem.

 

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