Raquel | Escrevivendo na Pandemia

De dentro do outono dos meus versos Por Raquel Almeida

ILUSTRAÇÃO ROBINHO SANTANA 

Uma ventania acinzentada envolta de folhas de sabugueiro entrou pela porta do planeta. Mesmo com o sol brilhando no céu, a sensação é fria, é o vento da morte passeando pelas ruas de todos os lugares do mundo e ele não tem critério: leva homem, mulher, jovem, criança, idoso… Todos os que se infectam são carregados em seus braços gélidos. A pandemia em 2020 pede reclusão total, porém, pessoas desprovidas de recursos e privilégios lutam sem descanso para garantir seu sustento e o senhorio do século XVIII está ainda mais cruel e assimilado em seus descendentes do século XXI. Nos bairros periféricos da cidade de São Paulo, as ruas permanecem agitadas, conforme a notícia corre, alguns se protegem com máscaras e álcool em gel mas o céu de outono anuncia com seus pipas que tem mais gente na rua do que deveria e o vento ainda não levou consigo o suficiente para o suposto equilíbrio. Como o tal é invisível, só se faz nítido nos que se infectam, moradores de bairros afastados dos grandes centros custaram para entender que o momento é de silêncio.

O mundo parece estar caminhando a passos curtos para a destruição, uns acreditam em apocalipse, renovação astral, em limpeza e recomeço. Outros ainda estão sem entender como em uma era moderna um vírus pode devastar sociedades inteiras em todo o mundo. Enquanto a morte nos ronda, nosso governo arma seu palanque dos horrores incitando o ódio e se mostrando alheio à população que morre à míngua sem ter direito mínimo aos prévios cuidados de saúde.

Em meio a essa crise, outro vírus tão devastador quanto o Corona, assola a humanidade. Este não é exclusivo de 2020, nos acompanha há séculos, aparentemente há uma crescente por conta das mídias sociais que denunciam diversos casos mas sabemos que esses mesmos casos que hoje tem visibilidade sombreiam sem descanso. Recentemente, duas crianças foram assassinadas pelo racismo, uma a tiros pela polícia genocida do estado do Rio de Janeiro e outro pela branquitude negligente, uns naturalizam enquanto outros seguem contestando sem cordialidade pois o racismo não é cordial, o racismo não nos pede licença, o racismo não tem pudor e o revide deve ser na mesma medida. Alguém bateu na janelinha das nossas bolhas e disse: “Os racistas querem nos destruir integralmente e vão usar a pandemia pra assassinar ainda mais pretos por todo o mundo”. Se pensavam que seria o COVID responsável por tantas mortes nesse período foi engano. Enquanto eu observo o céu da Brasilândia, onde os pipas cortam as nuvens, aparecem mais corpos pretos estirados periferias adentro nos abalando e nos dando o aviso de que vão continuar a onda de extermínio.

Em nossas pequenas redes de apoio se vê o mínimo de esperança, esses grupos se movimentam, fazem circular 

alimento e informação para que as periferias siga com pelo menos o básico de alimentação e higiene, porém nos postos de saúde não há testes disponíveis pra preto, nos cuidamos talvez pela intuição, pelo afeto que nosso povo carrega, porque também nunca foi do nosso feitio esperar por um governo que sabemos que sempre nos quis mortos e, se nos quiseram vivos um dia, foi para permanecermos no papel de servidão e quando rompemos com essa realidade imposta nos matam. Comecei falando sobre o vento acinzentado que leva todos sem critério de raça, mas aqui dentro dessa selva, conseguiram fazer com que ele tenha endereço certo e, sendo assim, não é coincidência que os bairros periféricos são os mais infetados, as trabalhadoras negras não deixaram de ir trabalhar nas casas de seus patrões brancos, elas continuam expostas nos ônibus, nos metrôs e trens da cidade. Há quem as culpe por estarem nas ruas, mas como podemos cobrar que uma família que mora em dois cômodos permaneça toda dentro de sua casa? As crianças e adultos colorem esse céu de pipas muitas vezes por não ter quintal nem espaço suficiente para estarem resguardados. Quem na periferia tem um quarto de jogos para as crianças brincarem?

Mesmo assim, nas ruas, crianças e jovens correm o risco de se depararem com uma polícia despreparada que pode atirar sem nenhum problema sob o aval do governo e por mais que inflamem o instagram e o facebook com hashtags e frases vazias, na próxima semana é esquecido e ficamos naturalmente a espera de um outro caso de covid ou de racismo e a nossa raiva vai sendo dopada e, em meio a tanto caos, vamos ficando anestesiados pelo entretenimento político devastador em que nessa cena tudo vira piada. Enquanto a gente dorme as piadas assinam leis que afunilam ainda mais a nossa sobrevivência nesse país. Aqui quem é preto, pobre nasce com a marca de alvo nas costas. Sabíamos, quando a pandemia começou, que nas periferias, o descaso seria maior tendo um governo que legitima o racismo, a xenofobia, o feminicídio, a homofobia e infelizmente, era nítido que seríamos os primeiros a cair nesse tabuleiro.

Contudo, aqui de dentro do outono dos meus versos, penso que enquanto este céu estiver colorido de pipas e as ruas barulhentas com a alegria da molecada deve se ter esperança e motivos para seguir acreditando em nossos revides. Neste momento, o maior deles é permanecer viva e com saúde e quando essa pandemia acabar nós possamos continuar lutando para que a próxima geração, como diz o poeta, não seja de excluídos, aqui debaixo do céu de outono mais colorido da cidade seguimos brigando pela sobrevivência, seja se esquivando da COVID seja se esquivando das balas convertidas em chicotes que nos açoitam ainda nos dias de hoje.

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