Dione Carlos para Leda Maria Martins | 13 Cartas Imaginadas

DIONE CARLOS
Nascida no
Rio de Janeiro, é dramaturga formada pela SP Escola de Teatro. Cursou Jornalismo na Universidade Metodista de São Paulo. Atua como dramaturga em parceria com várias cias de teatro. Possui quinze textos encenados, entre eles “Revoltar” e “Bonita”. Lançou seu primeiro livro, “Dramaturgias do Front”, em 2017. É orientadora artística da ELT, Escola Livre de teatro de Santo André.

LEDA MARIA MARTINS (Rio de Janeiro, 1955) 
É
poeta, ensaísta e dramaturga. Tem livros e ensaios teóricos publicados no Brasil, no exterior e criações no teatro e na performance. Entre os títulos publicados, estão A Cena em Sombras” (Perspectiva, 1995) e Afrografias da Memória” (Perspectiva, 1995). É Doutora em Letras-Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais e pós-doutorados em Estudos da Performance pela New York University, Tisch School of the Arts, Department of Performance Studies, (1999-2000 e 2009).

São Paulo, Brasil, maio de 2020.

Sua Majestade Leda Maria Martins,

Rainha da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Jatobá, dramaturga, encenadora, poeta, escritora, arte-educadora, professora doutora universitária, referência nacional e internacional, mulher cujo nome virou prêmio de artes cênicas, responsável pela implementação de dois cursos universitários em duas das maiores universidades públicas do país, pensadora que abriu caminho para os mestres populares compartilharem saberes dentro da Academia, sacerdotisa de letras vivas. Assim, você, Leda, é conhecida. Você, que nunca me permitiu chamá-la de senhora, pois Senhora mesmo é Nossa Senhora do Rosário. Esta é você. Algumas pessoas carregam múltiplos títulos, mas poucas conseguem superá-los, geralmente são superadas por eles. Você, não. Seu conhecimento é sabedoria. Vejo suas obras como convocações poéticas. “A Cena em Sombras” e “Afrografias da Memória” são duas obras-primas que nos fazem refletir sobre a herança afro-diaspórica, a possibilidade de pensar dramaturgia, de criar conceitos a partir de experiências brasileiras, aprendendo com as manifestações populares, que nunca se eximiram de abordar questões raramente representadas na cena a que estamos habituadas. Você diz o que faz. Sua imensidão permite que possamos ser grandes também. A sua fala cria lugares, onde podemos nos desenvolver sob uma grande exigência, mas sem medo, o mesmo medo que paralisa, que não abre espaço para a criação. O mesmo medo usado como método de submissão. Não, não precisamos disso. Não precisamos reproduzir relações coloniais para decidir quem manda e quem obedece. Isto deve ser definido pelo respeito conquistado, não imposto. O tipo de respeito que você desperta. Há um ditado que diz: “As contas do meu rosário são balas de artilharia”. Você é um destes rosários, com contas de poesia, atravessando um mar imenso, kalunga grande; rainha filha de rainha, devota de Santa resgatada de fundo de rio, erguida em altar de quem na igreja, por muito tempo, nem pôde entrar; são quatro horas da manhã na lembrança, a vizinhança toca a campainha daquela família sem despertador, cuja filha precisa acordar, pois tem um vestibular para enfrentar, ela será a primeira da família na universidade ingressar; cortando silêncios com “a fina lâmina da palavra”, pois “aprendeu a ler para ensinar aos camaradas”; por isso Nzambi sorri no meio do céu quando ela nos diz: “O coração do ser humano foi feito a imagem e semelhança do tambor do universo”; a memória vive no corpo que dança e canta, pinta e escreve na pele; seja samba ou congada, a cada canção entoada, a Rainha do mar escuta e envia água doce de rio para limpar o sal que escorre pelos nossos rostos; a tristeza vira alegria quando você bate os pés no chão e move o quadril no ritmo do tambor de cada coração presente; você, rainha, nos enxerga, escuta, abençoa, cura, nos amplia a percepção; transforma dor em sabedoria; sua vida é uma inspiração; educadora que exige, mulher que acolhe a menina jovem curiosa em sua casa para lhe ensinar a desviar das pedras do caminho; conta histórias de tempos imemoriais; estamos em um ritual para o Boi Ápis no Egito, estamos em um bumba-meu-boi no Brasil ou entoando Ditirambos na Grécia, enquanto você repete: “Zum-zum zum, tá no meio do mar”; sua voz atravessa o tempo; sua doçura é letal, capaz de derrotar exércitos; mulher de sangue banto, sangue Puri (de povo que já estava aqui, antes de todos os outros chegarem), sangue bento; dissecando Anjo negro em análise profunda e encenando o mesmo texto como diretora potente; poeta de dias anônimos; está sempre cantando, mesmo em silêncio; você diz que nos conhecemos há milênios e eu concordo, de vez em quando até lembro como foi; Quando você começa uma fala dizendo: “Meus queridos”, eu sei que vem artilharia pesada, forte; você passa batom como quem se prepara para um ritual, cruzas as pernas, move os braços, escuta atenta e dobra de tamanho quando fala; você traz os ritos, os dramas, os rituais, as magias de muitos lugares e repete sempre: “Nossas ancestrais eram pluriversais, não podemos optar pela ignorância”; você abraça com o peito aberto e ri com o sorriso largo e chora caudalosamente e gargalha feito criança; posso ouvi-la contando histórias de matar de rir, de emocionar; você é tantas, muito mais que os títulos conhecidos, arduamente conquistados, eles não dão conta da sua presença; esta carta é uma declaração de amor, de quem aprendeu a lhe amar em corpo, espírito, palavra escrita, falada, encenada, pensamento vivo. Que a Rainha do mar nos ajude a atravessar novamente, que possamos nos reinventar em ilhas prósperas até formarmos um novo continente. Que você possa ver florir todas as sementes que ajudou a plantar. Você, que levou a encruzilhada para dentro da Academia. A mesma encruzilhada que é lugar sagrado do encontro, da ruptura, da fusão, do caos que gera a ordem, onde boas perguntas são feitas e dogma algum encontra passagem. Que o tempo da ancestralidade nos liberte de um passado que não passa, de um presente que não acontece, de um futuro que não chega. Que toda dramaturgia seja uma oferenda para tratar o passado, alimentar o presente e apontar futuros melhores. Que por muito tempo possamos dizer: Muito obrigada, Leda Maria Martins, por tudo o que você representa, fez, faz e ainda fará. Muito obrigada por existir. Sua presença nos obriga a ser mais e melhor. Sigamos e que bons ventos nos guiem.

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