Memória e história: cruzamentos entre Eduardo Galeano e Walter Benjamin

Neste artigo foram traçados alguns paralelos entre as obras de Eduardo Galeano (escritor e jornalista uruguaio) e de Walter Benjamin (filósofo e crítico alemão), com a intenção de discutir o importante papel que a memória possui na construção da história social, e como a literatura pode contribuir para o resgate e valorização dessas memórias. 

Um esplendor que demora entre minhas pálpebras 

Ocorreu esta tarde, na estação, enquanto eu esperava o trem para Barcelona.

A luz acendeu a terra entre os trilhos. A terra teve de repente uma cor muito viva, como se o sangue tivesse subido ao seu rosto, e inchou debaixo dos trilhos. 

Eu não estava feliz, mas a terra estava, enquanto durou esse longo momento, e era eu o que tinha consciência para saber e memória para guardar.” 

(GALEANO, Eduardo. Dias e Noites de Amor e de Guerra. p. 24. 1978). 

A partir da segunda metade do século XX, muitas questões surgiram na sociedade e na ciência para serem pensadas e repensadas, inclusive o conceito de memória e sua relevância para a construção histórica. Até aquele momento, a História era lida de maneira linear e abarcando as ideias de evolução e progresso. Essa noção também parte de princípios como a neutralidade do historiador, a construção de uma história universal e a objetividade narrativa. Com as rupturas causadas nesse século, essa ciência também passa por reformulações.

A literatura também é uma potente fonte de memórias que influenciam na construção da história, apesar de não ter caráter científico. Também pode ser fonte de relatos, acontecimentos e denúncias de fatos que permearam um indivíduo, um grupo social, uma nação, ou um continente inteiro. Eduardo Galeano (1940-2015), nascido em Montevideo (Uruguai), foi um escritor fundamental, que fundia gêneros literários em suas obras e fazia de suas memórias (e das memórias alheias) sua matéria prima para a criação. Galeano trazia à tona, principalmente, a voz dos esquecidos, aqueles aos quais Walter Benjamin chamaria de “os vencidos”, fazendo quase sempre, um recorte na trajetória da América Latina. Esse traço característico nas obras do autor uruguaio tem a ver também com a sua trajetória como jornalista e militante. 

A obra de Galeano consiste principalmente em contos curtos, crônicas e textos jornalísticos, sem demasiado apego às regras rígidas dos gêneros literários, mas misturando-os frequentemente e sempre caminhando na linha tênue entre realidade e ficção. São grandes provas de que a memória pode fazer nascer potentes relatos e denúncias sobre a realidade e sobre seus quadros mais brutais, mas também resgata as pequenas e grandes belezas e potências do cotidiano e das relações humanas. 

A partir dos anos 1960, principalmente, a memória começa a emergir como uma possibilidade de se analisar a história, e ganha força o relato oral, o depoimento, as biografias anônimas e os testemunhos. Nesse sentido, pode-se retomar algumas contribuições de Walter Benjamin, que chamou a atenção para a necessidade de uma reformulação da análise histórica, já que para o autor, no historicismo, o historiador acaba por negligenciar o seu presente e tem dificuldades para realizar qualquer auto crítica ou estabelecer relação com o passado. Tal prática pode levar, quase sempre, o historiador a se identificar com “os vencedores”. A despeito disso, Benjamin propõe que se escreva a história dos vencidos. De fato, esse é um processo complexo, Benjamin nos deixa mais provocações do que respostas, mas se é que se pode dessa forma, o autor propõe que olhemos para o passado com o desejo de interferir no presente e, possivelmente, no futuro. 

A denúncia de Galeano não diz respeito apenas aos processos violentos que viveu (e vive) a América Latina, mas expõe com delicadeza outras nuances da vida. O autor denuncia o sistema capitalista, suas crueldades e contradições, a elitização e a influência norte americana, o colonialismo, a influência da mídia e da imprensa na manipulação de informações, mas também, com muita poesia e lirismo, Galeano faz coexistir todas essas denúncias com memórias de pessoas queridas, amigos, filhos, lugares, relatos de amor, saudade, sonhos e pequenas (grandes) alegrias encontradas nos escombros do cotidiano. 

Sua literatura está debruçada sobre o real, sobre o cotidiano, sobre pessoas reais. Em entrevista dada para NSC Total em outubro de 2008, o autor faz a seguinte fala: “É ela, não sou eu. Ela, a realidade, é que me oferece essa poesia. Eu a traduzo, trabalhando duro para ser digno de sua capacidade de ser bela. E encontro a mais alta beleza na lixeira da história, ali onde repousam os desdenhados, os ninguém, os que têm voz mas não são ouvidos. Elas e eles são os que fulguram com as luzes mais deslumbrantes no ignorado arco-íris da terra.” (GALEANO, 2008)

É possível associar a figura de Galeano à figura do narrador, que Benjamin conceitua como sendo aquele ou aquela que será responsável pela transmissão das experiências, das memórias. A figura do narrador traz as noções de alguém que promove o intercâmbio de experiências a partir da realidade, e que dispõe de uma natureza artesanal para transmitir tais relatos e experiências. Nas obras de Eduardo Galeano, as narrativas são costuradas a partir dessa artesania entre o narrador e a vida humana, entre a banalidade, o pequeno, para falar de esferas muito maiores da sociedade e do mundo. 

O resgate dessas memórias soterradas “escreve” na história uma nova experiência para diversas pessoas e grupos sociais até então marginalizados, negligenciados, esquecidos. É notável que Galeano escolhe para serem “personagens” centrais de seus livros aqueles e aquelas que de alguma forma estavam à margem diante de um poder dominador central. Ou seja, as narrativas envolvem indígenas, negros, mulheres, crianças, trabalhadores, operários, artistas, militantes políticos, mendigos, pobres, pessoas comuns. 

O que sabemos, de maneira geral, através da chamada “história oficial”, sobre a trajetória de nosso continente e dos processos que marcaram com sangue e suor o seu desenvolvimento até os dias atuais, ainda é insuficiente e precário. Ainda não dá conta de abarcar a totalidade e complexidade dos fatos, a pluralidade de indivíduos, e muito menos de estabelecer uma análise justa. Quando a literatura contribui de alguma maneira para reavivar essas memórias e colocar em evidência as narrativas dos vencidos (na perspectiva benjaminiana), elas impõem, de alguma forma, a reinterpretação do passado e da “memória oficial”.

De fato, Galeano não desempenhou um papel científico, não pretendeu escrever enquanto historiador, mas através da valorização e resgate da memória de pessoas “apagadas”, narradas em determinados espaços e tempos, o autor potencializa o aspecto inacabado da história do ponto de vista científico. Ressalta ainda o caráter heterogêneo e não linear dos processos que envolvem a construção histórica de um país, de um continente, do mundo.

Por fim, a criação artística cumpre nas obras de Galeano um papel não só literário, mas também político e social, e nos convida a deslocar o olhar para a diversidade e para o reconhecimento. A arte atrelada à memória concreta não é uma produção imparcial, como as narrativas dominantes ditas imparciais também não o são. A diferença é que, ao contrário do discurso histórico imposto, essas obras abordam discussões, atores e espaços que nos provocam a pensar um discurso histórico mais plural e justo para todas e todos. 

Obras de Eduardo Galeano e Walter Benjamin podem ser encontradas para consulta e empréstimo nas Bibliotecas do CCSP. 

 

+Para saber mais:

BENJAMIN, Walter. (1987). “O Narrador.” In: Magia e Técnica, Arte e Política – ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas, volume I, 3a edição, São Paulo: Editora Brasiliense.

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. Obras Escolhidas, vol. I. Magia e Técnica, Arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. 3ª edição. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. 

Canal Brasil. Eduardo Galeano Sangue Latino, 09 de jan. de 2018. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=47aFAIDierM>. Acesso em: 22 de ago. de 2020.

GALEANO, Eduardo. Dias e Noites de Amor e de Guerra. L&PM POCKET, 2001. 

GALEANO, Eduardo. O Livro dos Abraços. L&PM POCKET, 2005. 

NSC, Redação. Eduardo Galeano: “Me apaixona a realidade, com suas histórias secretas e suas zonas invisíveis”. NSC Total, 2008. Disponível em <https://www.nsctotal.com.br/noticias/eduardo-galeano-me-apaixona-a-realidade-com-suas-historias-secretas-e-suas-zonas>. Acesso em: 25 de ago. de 2020. 

USP. Memória e Resistência, [s.d.]. Disponível em: <http://www.usp.br/memoriaeresistencia/?page_id=8>. Acesso em: 25 de ago. de 2020.

 

Texto: Tessi Ferreira

Revisão: Isabela Pretti 

Ilustração: Kelly Sumadossi 

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