Direto da Curadoria: cinema com Carlos e Célio

Carlos Gabriel Pegoraro e Célio Franceschet, curadores de cinema do CCSP, trazem a carta aberta sobre o futuro do cinema, escrita pelo diretor Apichatpong Weerasethakul. O texto traduzido fica entre o confidencial e o literário, e reflete sobre os rumos do cinema na realidade pós-pandemia.

O CINEMA DE AGORA, de Apichatpong Weerasethakul

No dia 25 de abril, o diretor de cinema Jia Zhangke publicou uma carta reflexiva sobre o sentimento de estar em quarentena. O texto Still Walking (“ainda caminhando”, em inglês) é um desabafo do diretor chinês diante do clima de guerra que encontrou ao voltar para seu país, e termina com o desejo sincero de que tudo volte ao normal, mesmo que tenhamos que reaprender ou mudar os hábitos de nosso cotidiano. O que Zhangke mais deseja é poder voltar sentar lado a lado, ombro com ombro, em uma sala de cinema.

Inspirado pela carta de Jia Zhangke, o diretor tailandês Apichatpong Weerasethakul escreve outra carta, talvez uma resposta, para refletir não apenas sobre o momento de pandemia, mas sobre o que será do cinema nesse cenário. O que será que vai ficar de tudo isso? As pessoas vão voltar ao cinema com o mesmo intuito? Qual é a imagem que importa? São reflexões que o diretor traz em sua carta, O Cinema de Agora, que foi traduzida pela curadoria de cinema do CCSP:

Ao final do texto o diretor faz referência a alguns filmes dos irmãos Lumiére. São filmes do que chamamos de Primeiro Cinema, quando ainda estava se experimentando a linguagem cinematográfica e a narrativa pela imagem em movimento.
>>> Clique aqui para ver alguns desses filmes 

Apichatpong Weerasethakul
Carta: O Cinema de Agora

Fiquei tocado pela carta de Jia Zhangke que me fez entender a importância da bondade em tempos de confinamento. Eu desejo poder fazer o mesmo ao compartilhar meus pensamentos a seguir.

Esta manhã fiquei pensando sobre uma palavra, “jornada”, e como nos relacionamos com ela. Quando somos jovens e pegamos a estrada, nossas mentes inquietas nos fazem repetir: “Nós já chegamos?”, “Quando vamos chegar?”. Enquanto envelhecemos nós prestamos mais atenção para a paisagem passageira. Observamos as árvores, as casas, os sinais, os outros veículos. Nós nos treinamos para ser calmos em uma viagem. Sabíamos que havia um destino.

O filme em si é uma jornada. Nos conduz para diferentes pontos dramáticos. Entre os pontos existem preenchimentos que funcionam como mini-destinos. Quanto mais o cineasta ou a cineasta preenchem o caminho de forma desatada e fazem a audiência esquecer o tempo, mais ele ou ela se aproximam da “arte” cinematográfica. No Cerne, o figurinista, o maquiador, o cara do boom, a equipe de iluminação, o montador, o músico, e por aí vai, todos trabalham duro para impulsionar a audiência aos destinos.

Diferentemente de um filme, essa jornada da Covid-19 possui um destino vago. Diferentemente de pegar a estrada, não nos movemos. A maioria de nós fica em casa. Olhamos por nossas janelas e vemos o mesmo cenário e… continuamos olhando.

Sentimos a vulnerabilidade em nossas mentes e corpos. Estamos cientes de nossos relógios – internos e externos. Minha rotina da manhã foi estabelecida. Eu lembro cada passo dado ao preparar o café da manhã. Lembro qual a direção do Sol lá fora em qualquer horário.

Para manter nossa sanidade, alguns de nós adotamos técnicas profundas. Tentamos observar nosso redor, emoções, ações, tempo, impermanência. Quando o futuro é incerto, o agora se torna valioso.

Esta manhã, depois do café (um prato com frutas, cereal, e dois ovos cozidos), eu imaginei um cenário. Talvez essa situação vá procriar um grupo de pessoas que desenvolveram uma habilidade de estar no momento presente por mais tempo que outros. Elas conseguem encarar certas coisas por muito tempo. Eles prosperam em total consciência.

Depois que derrotarmos o vírus, quando a indústria de cinema despertar de seu estupor, este novo grupo, como frequentadores de cinema, não vão querer saber da mesma jornada velha que o cinema proporciona. Eles dominaram a arte de olhar; para os vizinhos, para telhados, para as telas de seus computadores. Eles treinaram através de incontáveis horas de vídeo chamadas com amigos, por jantares em grupo capturados por um único e contínuo ângulo de câmera. Eles precisam de um cinema que se aproxime da vida real, em tempo real. Eles querem o cinema do Agora que não preenche nada nem possui um destino.

Então eles serão introduzidos aos filmes de Béla Tarr, Tsai Ming-Liang, Lucrecia Martel, e talvez Apichatpong e Pedro Costa, entre outros. Por um tempo, estes cineastas obscuros podiam se tornar milionários com grandes bilheterias. Eles obteriam novos óculos de sol e uma tropa guarda-costas. Eles comprariam mansões e carros e fábricas de cigarro e parariam de fazer filmes. Mas logo o público acusaria estes filmes lentos de serem muito rápidos. Cartazes de protestos surgiriam, onde se leria: “Nós exigimos zero tramas, nada de movimento de câmera, nada de cortes, nada de música, nada.”

Um Manifesto Cinema Covid-19 (MCC) seria criado para o cinema libertar-se de sua estrutura e de sua própria jornada. “Nosso cinema não tem lugar para gratificações psicológicas. O destino perpétuo é o público, os iluminados.”

Nos corredores escuros em grandes cidades, as pessoas encarariam a luz branca, pura. O próximo filme talvez seja menos brilhante. Algum filme será tão escuro que mal será possível ver a cabeça dos espectadores. No entanto, existe um ruído de uma energia de consciência total que foi trocada entre as pessoas e a tela. É como o que Jia descreve em sua carta “… sentando juntos, ombro com ombro.” E sim, “este é o mais belo gesto da humanidade.”

O movimento vai ganhar tração ao redor do mundo como a pandemia. Festival de Filmes do Nada™ vai se proliferar. Enquanto isso, a “fácil distração”, os indivíduos “apegados” caminham para uma minoria. Em espaços públicos, para evitar o olhar, eles fingem serenidade. Eles respiram e mastigam a comida devagar. Eles raramente expressam raiva. Então eles retornam para suas casas para gritar, dormir e gritar um pouco mais em seus sonhos.

Logo a minoria se reúne em becos escuros. Eles caminham juntos e falam rápido. Eles não esperam o outro concluir sua frase. Eles saciam diversos pensamentos de uma única vez. Um dia um jovem diz que fez um filme. Ele guia seus amigos entusiasmados até seu porão e mostra sua criação. O grupo se choca ao descobrir que o filme continha algo. Eles encaram incrédulos uma imagem projetada de um cenário visto de uma janela de um carro, por três horas. Pela primeira vez eles podem sentar, suas mentes aquietadas.

A perigosa exibição continua apesar das proibições. Em bunkers, em abrigos, pessoas nervosas se espremem para ver algo – galhos de árvore, o mar, o vento, por horas. Material proíbido circulará. Eles estão sendo costurados às pressas.

Em uma certa tarde, a exibição mostra um homem dormindo por cinco horas, seguido de:

Três homens sentados em uma mesa de tarde. Um deles está fumando enquanto lê o jornal, e os outros dois estão jogando cartas. O fumante chama uma mulher que leva a eles uma garrafa de vinho. Ele serve o vinho em taças e oferece para seus amigos. Eles brindam e bebem. A mulher reaparece com uma bandeja e retira a taça do fumante. (Neste momento, uma pessoa da plateia não consegue mais acompanhar todas as ações. Ela sai e fecha seus olhos.) O homem fumante continua lendo seu jornal. Ele destaca um artigo para seus amigos. Os três riem com vontade. Enquanto isso, ele retira o que parece ser um pedaço de papel de seu maço de cigarros, ou um envelope. O filme acaba. A plateia se mantém sentada em silêncio. Os três homens são claramente não iluminados – eles estavam perdidos em suas vagas mentes e vícios por 67 segundos.

Então,
Um trem se aproxima da estação. Seu motor sai do quadro pela esquerda. Pessoas na plataforma cumprimentam os passageiros enquanto desembarcam.
A cena dura 50 segundos.

Em um dia brilhante, uma porta se abre,
e trabalhadores saem da fábrica
por 46 segundos.

>>> Clique aqui para ver a carta original

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