Crônicas da Casa: Um jardim, o mundo inteiro

Em um dia quente, o sol aquece a grama de um jardim que está longe do solo. Duas crianças rodopiam pela escada vermelha em forma de caracol. Elas escalam degraus, se agarram ao corrimão e seguem destemidas em direção ao jardim que se cansou de ficar no chão, e quis chegar mais perto do céu. Lá em cima, o mundo é gigante. Os pequenos pés estão descalços e os dedos agarram o mato que cintila em tons de verde. Elas são uma cobra, um pássaro, um enorme elefante, uma cadeira, uma onda, uma minhoca, uma estrela cadente, uma canoa, um monstro, um país, uma ilha mágica. 

Enormes prédios se erguem ao redor do jardim, que fica quase escondido no mosaico da cidade, mas as crianças se interessam justamente pelas miudezas, por aquilo que está escondido. Com as mãos agarradas a uma lupa imaginária, elas rastejam feito lagartos a examinar a terra, os pequenos buraquinhos de onde saem formigas enfileiradas, cambaleando com seus pedacinhos de folha. As crianças se apoiam na luz do dia, a infância brinca com o primitivo dos insetos e das plantas, com a delicadeza de não saber quase nada, mas de descobrir tanto. 

“E se você fosse uma formiga?”, uma das crianças pergunta.

“Eu ia devorar um dragão!”, a outra responde sem hesitar. 

As crianças pegam tudo que podem, depois de uma minuciosa investigação: um punhado de terra, uma pétala roxa, o pedaço de um pequeno galho, uma folha seca e fios de grama. Elas levam até a mãe que está sentada em um dos bancos. A mulher tateia tudo com absoluto cuidado, percorrendo seus dedos pela extensão da pétala, pela ranhura da folha, pelo liso da grama. Os filhos contam tudo que viram, os detalhes que lhe foram mais importantes, uma delas havia até arranhado o cotovelo, a outra tinha terra embaixo de todas as unhas. 

A mãe era cega, não podia ver com os olhos há muito tempo, e por isso as crianças eram suas guias mais fiéis. Os jardins eram seus lugares preferidos, elas sabiam que os carros e os edifícios eram importantes, mas as pedras e as abelhas também. Ali, elas encontram o mundo sorrateiro, germinando no solo, as cores, o cheiro, os sons, as texturas do que é singelo e tão vital. Observam de perto e cochicham no ouvido da mãe: é isso que os caracóis falam. E perguntam: você ouviu o que aquela mosquinha disse? Agora já sabem o dialeto das lesmas, e até são capazes de imitar seu rastejar. A mãe já conhece as palavras, as letras e as cores, mas aprende tudo de novo. 

“Mãe, e se você fosse uma formiga?” 

“Eu ia te ensinar a domar dragões”


Texto: Tessi Ferreira

Ilustração: Isaac de Moraes – A ilustração da crônica traz  pequenas bolas brancas sobre os desenhos em vermelho. Estas fazem uma alusão à palavra “tocar” – um dos disparadores para a criação do texto – escrita em Braille. 

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