Dia desses estava andando pela biblioteca e observando as enormes e robustas estantes de livros. É clichê dizer que ali se escondem ou se encontram milhares de histórias, memórias e conhecimentos. Sim, de fato. Essa é a função de uma biblioteca. Colocar à disposição do público uma diversidade de palavras organizadas. Constituindo frases, orações e períodos que formarão parágrafos, capítulos, diálogos, narrativas, que falarão sobre um navio pirata, sobre outras civilizações, a anatomia do corpo humano, dicas para negócios, tentativas de desvendar a mente humana, entre tantos outros temas que podem ser de interesse de cada uma das centenas de pessoas que passam por aquele lugar todos os dias. Fôlego. É preciso fôlego para absorver tanto, assimilar muito, desvendar sempre. E isso aquela senhora com a idade das minhas avós tinha de sobra.
Em uma mesa de madeira, no canto da biblioteca, sempre sozinha, estava ela. No calor utilizava um chapéu que a protegia do sol, ainda que lá dentro, apenas alguns raios solares lambessem fragmentos de seu corpo. No frio, utilizava luvas de lã com a ponta dos dedos de fora, isso facilitava folhear as páginas dos livros. Por algumas horas a mulher se misturava e se camuflava no marrom e no cinza daquela enorme sala. Seus interesses eram diversos: livros de biologia, física, psicologia, economia, poesia dos mais diferentes países, peças de teatro, fotografias e antigos volumes de enciclopédias.
“Senhora, você precisa de ajuda?” perguntavam alguns funcionários. Ela dizia que não, que estava bem, estava bem. Um dia, na mesa ao lado, estudantes liam páginas e páginas de livros extensos, estudando para o vestibular. Dispersos, começaram a jogar conversa fora, até que um deles confessou sua paixão avassaladora por uma colega de classe. Os outros acharam graça, ameaçaram contar para a garota. Ele disse “NÃO! Eu não sei o que dizer”. Os amigos começaram a sugerir maneiras de declarar seu amor. Dê um presente. Convide para sair. Elogia ela. Chegaram a conclusão que uma mensagem seria um bom primeiro passo. Mas o que dizer? Manda um oi. Não, um oi é fraco. Pede ajuda com a matéria. Não, ela acharia que ele não é inteligente o bastante.
“Diz pra ela: casa é sonho triturar o osso.”, uma voz declarou entusiasmada na mesa ao lado. Era a velha mulher. Os adolescentes não entenderam de cara, mas aquilo significava, para ela, um gesto de amor. Ao contrário do que muitos pensavam, aquela não era uma leitora comum e sua intimidade com as palavras não era convencional. Dona Ana mal sabia assinar o próprio nome, lia tropeçando nas vogais e consoantes, não entendia de vírgulas ou pontos finais, mas estava aprendendo a arquitetura das palavras selecionando aquelas com as quais mais simpatizava. Ela copiava com dificuldade em seu caderninho e depois tentava juntá-las. Reorganizar o imaginário. Recontar o já contado. Subverter o determinado. Quando promoveu o encontro inusitado entre “casa”, “é”, “sonho”, “triturar”, “o” e “osso”, uma luz recaiu sobre aqueles significados turvos, sobre as palavras mais bonitas que ela encontrou, em anos de aventuras naquelas pilhas de livros e guardou com carinho. Talvez o amor seja um pouco isso, escolher nossas melhores palavras para o outro, seja lá o que elas signifiquem na definição do dicionário. Muito mais está dito, na ruptura da língua.
Texto: Tessi Ferreira
Ilustração: Isaac de Moraes