Embora censurada e perseguida, a dramaturgia brasileira teve grandes expoentes no período da ditadura militar, fortalecendo o papel engajado e político de companhias como o Grupo Opinião, o Teatro de Arena e o Teatro Oficina. Nesse contexto, os textos apresentados por estes e outros grupos tinham grande impacto na cultura da época, especialmente no circuito Rio-São Paulo, assim como autores que, embora colaborassem com diversos coletivos teatrais, construíram trajetórias independentes.
Apesar de ser acompanhado pelo estigma de autor marginal, o dramaturgo Plínio Marcos (1935-1999) nasceu em uma família de classe média e adquiriu a maior parte do conhecimento exprimido em suas obras através de estudos autodidatas, já que tinha dificuldade na maior parte das disciplinas de sua escola, reprovando inúmeras vezes em várias delas. Após atuar como palhaço de um circo em Santos e, lá, conhecer Patrícia Galvão, a Pagu (1910-1962), que naquele momento procurava um ator substituto para a montagem de Pluft, o Fantasminha, de Maria Clara Machado, Plínio Marcos mostrou a ela sua primeira peça, Barrela (1959).
Nessa obra, um menino de classe média é preso e, na cadeia, sofre um estupro coletivo e torna-se um assassino ao sair de lá para se vingar de seus violentadores – caso que havia sido noticiado pouco tempo antes e fez com que Plínio entrasse em choque, sendo estimulado a desenvolver o texto. Após o impacto causado pela única sessão da peça em Santos, posteriormente censurada pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), Plínio escreveu a peça Os Fantoches, posteriormente alterada para Chapéu sobre Paralelepípedo para Alguém Chutar e mais tarde reescrita como Jornada de um Imbecil até o Entendimento (1968) – reencenada no Centro Cultural São Paulo em 2018.
No início dos anos 1960, Plínio Marcos se mudou de Santos para São Paulo, trabalhando como figurante em peças como O Fim da Humanidade, com Cacilda Becker, e ganhando, mais tarde, papéis de destaque até conseguir a oportunidade de apresentar sua primeira dramaturgia própria na cidade: Reportagem de um tempo mau (1965), desta vez impedida de ser exibida antes mesmo de sua estreia. Com a proibição, Dois Perdidos Numa Noite Suja, do ano seguinte, acabou por ser a estreia de Plínio em São Paulo, sendo bem recebida tanto pelo público quanto por profissionais da classe artística, como a atriz Cacilda Becker e o diretor Alberto D’Aversa.
Aproveitando o sucesso, Plínio montou o breve texto Navalha na carne (1967), no qual a relação entre as personagens Vado e Neusa Sueli se desenvolve em um cenário sórdido de “hotel de quinta classe” e apresenta um frequente uso de palavras de baixo calão e agressões físicas – o que dificultou a passagem do texto pela censura, promovendo uma mobilização entre profissionais da classe artística até sua liberação. A peça ainda chama atenção por trazer uma das primeiras personagens homossexuais com papel de destaque da dramaturgia brasileira, expondo, em sequências de agressões físicas e verbais, atitudes amorais e homofóbicas.
Com sua finalidade de “incomodar aqueles que estavam sossegados” e dizendo que “um povo que não ama e não preserva suas formas de expressão mais autênticas jamais será um povo livre”, Plínio Marcos se fazia notar pelo o que o crítico Anatol Rosenfeld chamou de teatro de agressão em um padrão similar àquele adotado pelo Teatro Oficina, desafiando o público, ainda que não pela interação física, mas verbal e moral, e propondo uma alteração nos comportamentos deste, majoritariamente composto por pessoas da classe média, que testemunhariam episódios de miséria e violência explícita presentes no teatro de Plínio.
Ainda que o texto teatral seja elaborado visando uma encenação, com todos os elementos cênicos a que se tem direito, entrar em contato com o teatro por meio da leitura pode proporcionar uma infinidade de novas interpretações e atribuições de significado por parte do leitor – principalmente em peças de dramaturgos como Nelson Rodrigues e o próprio Plínio Marcos, que apresentam prosódia e clareza, características essenciais na aproximação com a fala cotidiana, usando até mesmo as gírias mais comuns à época e falas muito curtas nas quais uma personagem interrompe a outra, o que exige grande sintonia e preparação por parte dos atores.
Marcadas por um alto nível de tensão e intensidade dramática, as obras de Plínio reiteram a desigualdade e o preconceito velados que assolam o Brasil e como a distância entre as diferentes condições de vida colabora para a difusão de que “não há outra opção” e, por consequência, para a impossibilidade de estabelecer empatia com a realidade inacessível – da estabilidade da classe média à incerteza daqueles que transitam entre a pobreza e a miséria e que ocupam o centro das obras do dramaturgo.
Embora seja consideravelmente mais conhecido por sua carreira de dramaturgo, Plínio Marcos produziu diversos textos em prosa, nos quais preza pela objetividade em construções simples e diretas ao mesmo tempo em que mantém o conteúdo denso e violento, plastificando e concretizando conflitos que estão implícitos em nossa sociedade. Do racismo à miséria, suas personagens vivem condições precárias, assim como aquelas presentes em suas peças de teatro, e buscam ao menos sobreviver com dignidade às situações agressivas, humilhantes e por vezes escatológicas vividas por elas.
Na Biblioteca Sérgio Milliet, além das peças de Plínio Marcos, estão disponíveis ainda alguns volumes de contos como a coletânea Histórias das Quebradas do Mundaréu, que inclui 40 narrativas curtas cujo tom se encontra entre o conto e a crônica, com a descrição e o desenrolar de ações corriqueiras, mas que podem levar à mudança radical na vida das personagens, desde a interação direta com o leitor em “O Último Tocador de Tambu” – similar à quebra da quarta parede no teatro –, ao final catártico do triângulo amoroso entre Juca, Oscar e Ritinha em “Uma História de Subúrbio”.
O impacto causado por Plínio – no leitor ou no espectador – se assemelha à estética do choque provocada por autores modernistas do início do século XX, com o intuito de levar aquele que presencia as situações cruas e brutais a reavaliar a sociedade e se alinhar às proposições das obras do autor. De forma explícita, o narrador e/ou as próprias personagens se posicionam e concluem que a injustiça e a desigualdade não são tão simples de se alterar, uma vez que estão imbricadas em nossa maneira de enxergar o mundo e ocupar um espaço que só se apresenta como disponível a partir da ausência do outro.
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Texto: João Vitor Guimarães
Revisão: Paulo Vinicio de Brito
Ilustração: Beatriz Vecchia (a partir de imagem de divulgação da peça Jornada de um imbecil até o entendimento)
*Publicado em 13 de dezembro de 2018