Dupla selecionada pelo Programa de Exposições 2018, Denis Rodriguez e Leonardo Remor pesquisam, há alguns anos, a cultura de povos originários do Brasil e apresentam, na II Mostra, uma série de trabalhos que refletem seus caminhos de pesquisa artística e que se relacionam com a Missão de Pesquisas Folclóricas de Mário de Andrade – cujo acervo é mantido pelo CCSP.
Qual foi o mote para a escolha do tema e do tipo de execução da obra exposta no CCSP?
O tema nos escolhe mais do que escolhemos o tema. Deslizamos de um trabalho para outro de uma maneira bastante orgânica. Aprendendo com o Barro surgiu do nosso envolvimento com um grupo de pesquisa da UFRGS, coordenado pela Cláudia Zanatta. Desde o início de 2017 fomos capturados pela vida e pela produção cerâmica de Kerexu Jera Poty, ou simplesmente Antonia, uma mulher Mbyá-Guarani de 53 anos que vive na terra indígena Flor do Campo, em Barra do Ribeiro, grande Porto Alegre. Entre idas e vindas, produzimos um documentário, no qual acompanhamos a produção cerâmica de Kerexu. Da coleta da argila nas margens do rio até a queima do petenguá com gravetos no chão. O vídeo teve como objetivo fornecer suporte às escolas de ensino fundamental para que os estudantes pudessem conhecer o contexto e as técnicas da cerâmica Guarani, que em nosso Estado está em vias de desaparecer.
A partir desse envolvimento reconhecemos o ambiente educacional como site para a nossa prática e foi então que decidimos produzir um kit educativo para distribuição em escolas indígenas e não indígenas. O kit continha uma peça cerâmica de Kerexu, o vídeo Kerexu e um pequeno livro bilíngue, português e guarani, com sugestões de atividades com argila e questionamentos sobre a posse e a demarcação de terras indígenas no Brasil.
Segundo a crítica Camila Bachelany, o objetivo da instalação aqui apresentada, e também de outros trabalhos de vocês, “não é documentar, descrever ou narrar uma prática cultural, mas aprender com ela, expandi-la”. Como vocês interpretam essa afirmação? E até que ponto e como a imersão e a observação se dão na obra de vocês?
Trabalhar com filme, vídeo, documentário já informa uma outra atitude em relação ao tempo. Essas mídias exigem tempo. Somos também observadores e bons ouvintes. Estivemos envolvidos com Aprendendo com o Barro por mais de 20 meses. Primeiro a aproximação com a Antônia, uma mulher especial em todos os sentidos. Com ela aprendemos a fazer e gostar da produção cerâmica e também vivenciamos outros aprendizados. A Antônia deseja ser pajé e ser cacique na comunidade em que vive, além disso, ela optou em permanecer em uma terra não demarcada, quando o poder público ofereceu aos seus familiares terra em uma comunidade próxima. Antônia é uma doce guerreira, que enfrenta tanto os valores sociais da comunidade em que vive como também resiste à precariedade e à exclusão dos que optam por salvaguardar sua própria cultura.
A ideia de trabalhar com cerâmica surgiu dessa aproximação, tanto da Antônia, grande inspiração, como também da Claudia Zanatta, que é professora de cerâmica na graduação do Instituto de Artes da UFRGS. A instalação Vasos para ouvir é o resultado de tudo isso, de experimentar a partir dessas proximidades, o que facilita e estimula uma produção. Assim, decidimos produzir os vasos no ateliê de cerâmica da UFRGS, entretanto a escala deles não permitiu a queima nos fornos disponíveis, que conseguem apenas abrigar peças de até 80 cm de altura.
Em agosto passado, durante as filmagens da distribuição do kit educativo nas escolas, documentamos essa atividade na terra indígena Cantagalo, cujas lideranças não autorizaram o uso do material captado. Quando retornávamos para casa um tanto frustrados, avistamos uma olaria e decidimos parar ali para saber se poderiam queimar os nossos vasos. E foi assim que os vasos ficaram prontos para a mostra no CCSP. Outro aprendizado. Nunca havíamos nos aproximado do cotidiano das pequenas olarias a carvão.
Na instalação Vasos para Ouvir vocês trabalham com a escultura em barro e com registros sonoros. É intencional e metafórico o fato de para ouvir o público precisar se aproximar dos vasos?
Sim, os vasos pedem essa aproximação e foram pensados para isso. É o barro ressoando canções esquecidas, apagadas. É um momento íntimo, no qual cada um é convidado a escutar a terra. E o que ela canta?
Esse trabalho surgiu na nossa primeira visita ao CCSP, logo após sermos selecionados. As missões etnográficas organizadas por Mário de Andrade são importante referência na nossa produção, desde a exposição O Valor das Coisas, no Atelier Subterrânea, em Porto Alegre, em 2014. Uma vez em São Paulo, decidimos conhecer os arquivos da Missão e a partir daí começamos a explorar a Discoteca Oneyda Alvarenga. Os Vasos para Ouvir surgiram do desejo de juntar essa nossa pesquisa nos arquivos da Discoteca com a produção cerâmica.
Cada formato de vaso tem uma peculiaridade acústica, alguns são mais graves, outros mais agudos. E todos foram pensados para diferentes relações do corpo com o ato de ouvir. Tocar nos vasos também faz parte da experiência.
Qual foi o critério de escolha dos fonogramas do Acervo Histórico da Discoteca Oneyda Alvarenga para a instalação Vasos para ouvir?
Aprendendo com o Barro teve também esse momento de aprender sobre a Missão de Pesquisas Folclóricas. Foram dias intensos e deliciosos que passamos com a Wilma (Wilma Martins, coordenadora do Acervo Histórico Discoteca Oneyda Alvarenga). A Wilma poderia ser uma das protagonistas dos nossos filmes, tantas histórias guardadas, tantas relações e correlações a serem feitas e ela ali, guardiã de um arquivo tão importante e tão pouco pesquisado.
Nossa investigação começou com um filtro bem restrito, buscávamos canções guaranis gravadas pela Missão. E depois foi se ampliando conforme fomos conhecendo de fato as atividades das missões. Já tínhamos enfrentado a idealização colonizadora em outros trabalhos – como na exposição Pariwat Jenipapo, na Associação Fotoativa, em Belém, em 2016 – e o grande equívoco de se buscar pureza nas etnias em contato. E assim fomos alargando ainda mais o foco da pesquisa e no final optamos por nove canções caboclas com atravessamento de temáticas indígenas.
Gravamos também Antônia entoando canções guaranis enquanto buscava barro às margens do rio e também durante todo o seu processo de trabalho, inclusive um dos vasos é performado exclusivamente por ela.
As canções de Kerexu também foram gravadas em vinil , em colaboração com o amigo e artista Ted Riederer, para o projeto Never Records de Nova York.
Entrevista: Marcia Dutra e Vinícius Máximo
Foto: Vídeo Kerexu, de Denis Rodriguez e Leonardo Remor; Still: Vicente Carcuchinski
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