RUDINEI BORGES DOS SANTOS (Itaituba, 1983)
É dramaturgo e poeta, doutorando e mestre em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), com Licenciatura em Filosofia. Autor dos livros “Epístola.40”, “Memorial dos Meninos” e “Chão de Terra Batida”. Diretor do Núcleo Macabéa. Foi finalista do Prêmio Shell de Teatro (SP) com a peça “Dezuó: Breviário das Águas”.
FEDERICO GARCÍA LORCA (Fuente Vaqueros, Espanha, 1898 – Granada, 1936)
Lorca pelo jornalista Mario Hernández: “Toda a obra de Federico García Lorca, do Romanceiro Gitano a Bodas de Sangue, Dona Rosita, a Solteira, Pranto por Ignacio Sánchez Mejías, Seis Poemas Galegos ou O Divã do Tamarit, é atravessada por um profundo senso do popular espanhol, que corresponde tanto a saberes, crenças e sentimentos quanto ao modo de celebração da vida (e da morte) nas manifestações folclóricas de toda a Península. Lorca foi um poeta capaz de se expressar em formas líricas ou dramáticas, dentro de uma tradição literária que, sem perder a conexão com a cultura europeia, tenta dar voz a aspirações coletivas. Essa raiz popular aparece nele muito apurada, transgredida, refinadamente transfigurada” (El País, 18 de Agosto de 2016).
Carta a Federico García Lorca, 86 anos depois de seu assassinato em Granada, Espanha.
O coração insone dorme comigo no ventre dos pássaros. Guardo o limo e o mármore nas asas de um anjo. Lanças no teu corpo contrito. O atrito das mãos sobre o semblante cabisbaixo. A palma dos pés arrastando a aridez da terra acre. A sede do útero incendiado. A febre dos ombros puídos. O teu sexo e as tuas pernas alagadiças. O teu corpo acocora na chuva de granizo. Gotículas de água e sal banham o teu rosto sem olhos. O relampeio acende o precipício e o trovão acarinha os teus braços franzinos. É preciso chover mais um tanto nos teus cabelos. É preciso cultivar a chuva na tua voz até que nasça o centeio e o trigo. Até que cresçam as ervas daninhas no campo rupestre e, do alto das cordilheiras, as aves carnívoras alcem vôo. As serpentes farão ninhos nos teus ouvidos. E os ovos da víbora chocarão na enseada, onde sossegas. Ali, perto do ancoradouro. Ali, onde partem a nau e os toureiros. Onde a maré abranda os rochedos. Onde o estreito acorda o oriente. Onde germina a rosa violácea. Ali, onde a boca rezinga o alimento. Ali o estômago atiça o lampejo das máquinas. Ali amparo o teu rosto sem olhos. Lavo o vinagre dos teus lábios. Guardo a ferrugem do cravo nos tornozelos. Amparo a água do cântaro à beira do poço. Ali reparo os teus machucados. Deito a pele e a ossatura na brisa, ao relento. O teu corpo descansa, agora, no areal do deserto afora, na lonjura da gruta. Ali, onde nenhum veleiro aporta, sou a bússola das embarcações sem rumo. A colina. O detrito da explosão na mina de enxofre. Sou o cais, às vezes. Sou o projétil que atinge o teu rosto sem olhos. A carabina. Sei partir, sem âncoras, aos mares escondidos nos escudos, no ferimento. Mais de uma vez, deitei o corpo inerme no altar em chamas. Vi queimar a cartilagem e a névoa das manhãs. Vi a cinza nas tuas mãos. Vi o mar arder. O sol desaparecer no firmamento. As alamedas se arrastaram sem saída. As esquinas ermas não vieram te socorrer quando gritavas o teu nome. Quando pedias compaixão. Tens um nome. E balbucio, sem rodeios, o vozeio das horas, o instante quando finda a sede e o mercúrio alcança o fundo do arroio. E balbucio, sem rodeios, o teu nome. Qual é o teu nome? A tua sina? O teu juramento? São crisálidas. O ensombro sobre a multidão de atiradores. A parede invisível dum cômodo sem alicerce. A janela onde avistam o descampado e a catedral. A grande marcha sobre a terra estrangeira. A grande comunhão dos homens. A fábrica onde cozem azougues. A cicatriz da tua perna esquerda. O aleijão no abdômen. O suor nas têmporas. A nudez do córrego onde nadam os meninos de Fuente Vaqueros. O vilarejo onde caminhas em Andaluzia, antes do rio secar. A beira do penhasco como o mormaço na garganta. Não há remendos nem ataduras. A tarde acode o fim do dia, a ida aos recônditos mais distantes. E vou contigo até Granada para te dizer das cotovias que vi na planície. Para te dizer da estrada estreita que abre, entre paragens, pelo deserto enquanto caminhas. Sou o deserto enquanto caminhas.
Rudinei Borges dos Santos
São Paulo, SP. 8 de maio 2020