Ronaldo Serruya a Copi | 13 Cartas Imaginadas

RONALDO SERRUYA (Belém, 1971)
Dramaturgo e ator do grupo XIX de teatro e do Teatro Kunyn. Desde 2009 pesquisa a questão queer nas artes cênicas. Autor da peça “Desmesura” (Premio Suzy Capó no 25º. Festival MIX da Diversidade). Pesquisa discursos artísticos sobre HIV através do projeto “Como eliminar monstros” e atualmente finaliza o monólogo “A doença do Outro” sobre a temática.


COPI – Raul
Damonte Botana
(Buenos Aires, 1939 — Paris, 1987)
Exilou-se em Paris com 16 anos de idade, onde permaneceu até morrer, em 1987 (…) Sua vida foi exemplo de liberdade e contestação ao status quo. Dizia-se ‘tão de vanguarda que havia sido contaminado pela Aids antes de qualquer outro’. Era homossexual, ou melhor, uma personalidade “trans”: transitando como ator travesti, ficcionalizando-se como personagem, atuando como homem/mulher/gay/animal e propondo um teatro sem rótulos, que não se enquadra em definições fixas. Entre suas obras estão: “Eva Perón”, “Loretta Strong”, “A geladeira”.

(Renata Pimentel – Revista Outros Críticos/ Fevereiro de 2016)

São Paulo, maio de 2020.

Carta à Copi ou A ilha da Morte está de volta!

Copi, Copi,
Caro Copi
Corre aqui pra ver as manchetes dos jornais!
Temos uma visita inoportuna outra vez!
Você mal deixou seu leito rumo ao Pere Lachaise
e a ilha da morte de novo abre as suas covas anônimas.
O Bronx sendo o que sempre foi:
o cemitério das pretas pobres transviadas.
Ah, essa vocação dos lugares é uma coisa impressionante.
Paris, Morumbi, Brasilândia.
A história é como um ferida repetitiva, Copi.
Cansativa.
Enfadonha.
Ela até tenta ser um vaudeville,
Mas acho que erra na quantidade de entradas e saídas.
Uma pena.
Restaria a ópera bufa,
Mas os personagens não são grotescos o suficiente.
Tentam ser.
O que é lastimável.
Já estava até maquiado para o nosso encontro, mas tive que tirar a fantasia.
E agora com uma máscara apegada à cara tudo perde um pouco a graça.
Você odiaria, eu acho.
Eu ensaio te escrever já faz um tempo.
Confesso que te stalkear nunca foi muito fácil por aqui.
Você deixou rastros certeiros. Não se trata disso.
O problema são os caretas e covardes de sempre tentando dificultar o acesso.
Mas os cercos, como as camisinhas, às vezes furam.
Isso é fato.
E as mensagens nas garrafas que você jogou ao mar, por obra do afeto e sorte, chegaram até mim.
O que me deixa puto, mas não diminui a força do encontro.
É engraçado isso:
Dividir um estigma nem sempre nos aproxima.
Mas compartilhar uma intuição sobre ele sim.
E foi isso que senti ao te ler.
Sempre invejei sua capacidade abjeta de rir daquilo que nos corrói.
Seu desdém absoluto pelo que apavora a maioria.
Eu incluído.
Mas não achava que esse seria o assunto da minha carta.
A verdade é que a gente nunca sabe o assunto de uma carta até realmente escrevê-la.Você senta, e quando vê as palavras estão lá, se infiltrando à sua revelia.

Eu queria ter começado essa carta
citando a sua frase célebre:
“NÃO É A LÍNGUA, É O CU!
E a partir daí tecer loas ao seu escárnio estruturado, ao seu tratado queer à frente do seu tempo.
Mais acho que você começaria a rir, assim como eu comeceise eu te dissesse que dessa vez, agora, aqui:
NÃO É O CU, Copi?
MAS JUSTAMENTE A LÍNGUA!

Quem diria, hein Copi?

Depois que vimos nossos buracos humilhados, vilões anais expostos à sanha dos moralistas em headlines sensacionalistas de toda ordem,
Eis que agora é o simples aperto de mãos que se interdita.
Parece até piada de mau gosto ver os relinchos e os medos brotarem dos olhos assustados de todos.
Você se espantaria com a correria do mundo diante da nova pandemia.
Ainda mais você que esteve no olho do furacão da anterior.
Pois daqui eu te conto, Copizito:
Pouca coisa mudou.
A culpa sempre presente.
Estava nas nossas trepadas,
Está agora aqui nas corridas ao ar livre.
Mas nós sabemos que algumas mortes são mais culpadas do que outras.
As mortes das bichas são mais culpadas.
A sua morte foi mais culpada.
E que você tenha escolhido rir dela no final foi definitivamente a maior vingança que só uma bicha danada como você poderia elaborar.

Termino te dizendo que você ficaria estarrecido (ou não) em saber que a ciência e a política estão juntas desde o início para evitar a propagação do novo mal.

Inimaginável, antes não?

Eu não estava lá, quando tivemos que ser nós, apenas nós, tantas como nós, sozinhas, cheias de feridas e escarras, cadavéricas, mal se aguentando em pé, a exigir uma vida qualquer.

Porque as bichas valem quase nada.
Não valiam na época.
Valem ainda tão pouco.
A tristeza é a mesma.
E é imensa.
Mas, ainda assim, sempre é possível escolher RIR. 

Saudações,

Ronaldo.

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