Luh Maza a Abá de Conta-Contos | 13 Cartas Imaginadas

LUH MAZA (Rio de Janeiro, 1987) 
É autora, diretora e atriz. Parte de suas peças está publicada no livro “Teatro” (Chiado Editora – Lisboa, 2015) e na antologia “Dramaturgia Negra” (Funarte, 2019). Escreveu para a série “Sessão de Terapia” (
Globoplay/GNT, 2019), tornando-se a primeira roteirista trans da TV brasileira.


ABÁ DE CONTA-CONTOS
Personagem/autora de ficção criada por Luh Maza, que imaginou, a partir de um dado de ausência histórica, uma possibilidade efetiva de presença.

Minha querida Abá,

Andava triste sem encontrar destinatária para minha emoção.

Queria escrever para outra mulher. Outra negra. Outra trans. Precisava também ser outra dramaturga. E eu achava bom ser brasileira. Representatividade. Alguém em quem me reconhecesse, que me inspiraria, a quem eu sentaria ao redor dos pés para receber conselhos e então me faria ter esperança.

Já tinha desistido de tal referência na História e adormecido. Então minha alegria ao te encontrar num livro carcomido, esquecido e nunca escrito. Jamais tinha ouvido falar de Abá de Conta-Contos: uma travesti preta escritora de teatro no século XVIII. Afrontosa! Adoro.

Passei uma madrugada remontando sua trajetória. Imaginando aquele tempo. Inventando um tempo. Construindo uma memória falsa de uma História que nem pudemos viver. A língua que veio d‘África e escapou da feijoada para contar seus contos. Uma Sherazade de pele de noite e olhos de estrela com falas interpretadas, autora-atriz que era. Dizem que alguém te ouviu contar e transcreveu para a cena e então você virou teatro.

Imagino o espanto de toda corte, vilarejo e grupo de Whatsapp quando se descobriu que uma preta viada era agora dramaturga, uma travaturga. Suas peças denunciavam a realidade de gente como você, como nós e também sonhavam o Brasil.

Não era fácil conseguir um teatro para se apresentar e se sim era por uma noite apenas. Você para eles era um evento. Como um freak show: a peça da dramaturga preta trans. No final, depois dos aplausos e das vaias, te botavam de volta os grilhões. Ou será que nem tiravam?

Li que usaram como jurisprudência o caso centenário de Xica Manicongo, nossa mana, para te condenarem como louca, bruxa, pederasta – mal sabiam que você amava as mulheres. Assassinada. Suicidada. Você foi. Pela Coroa, pelo Estado, pela sociedade civil dos homens e mulheres de bem de esquerda e direita e centro e alto e baixo. Você foi morta. Antes dos trinta e cinco anos.

Acho que você ia gostar de ferver nos dias de hoje ao som da Linn.

Neste século, nós temos liberdade. Liberdade de ir e vir – se tiver dinheiro para condução e as fronteiras forem livres. Liberdade para viver onde se quer – se puder pagar por isso. Liberdade de vestir o que quiser – é só não ser vista. Liberdade de expressão: de falar o que querem censores e seguidores. Liberdade artística: todes podem fazer qualquer personagem – desde que sejam cisgêneros e brancos. E assim a gente vai entendendo essa liberdade de quem mesmo?

Quero te contar que ano passado escrevi e dirigi a primeira obra criada, musicada e atuada por mulheres trans no Theatro Municipal de São Paulo. Dez minutos de um dia para fazer História. Aquele palco tão erudito ocupado por treze travas maravilhosas. E a plateia? Bichas, fanchas, não bináries e queers de todas as letras.

Desculpa, eu sei que você não conheceu Judith Butler, mas quer saber? Eu acho que você era queer pra caramba. Esta carta é também para a Ave, o Daniel, a Leonarda, a Renata, a Leona, a Dandara, a Julia, a Alice, a Mel, o Ariel… e outres que estão espalhades por esse país escrevendo bem agora. Você ia adorar conhecê-los: seus filhos paridos de si mesmos. Nós estamos aqui, Abá: transpofagizando a dramaturgia.

E agora, quando o que era antes não é mais e a incerteza do que vem assusta a todos, eu penso como é importante rever a História.

A sua ausência nos revela.

Com esperança,

Luh Maza.

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