Referência para o teatro experimental, Espaço Ademar Guerra reabre após reforma

Quem circula pelo Centro Cultural São Paulo talvez não saiba que embaixo dos pisos e espaços mais conhecidos (os Jardins Suspensos, a Biblioteca, as áreas de convivência…) existe um lugar tão efervescente quanto aqueles que o público ocupa diária e intensamente. O Piso 23 de Maio, localizado em nosso subsolo, abriga trabalhos fundamentais para o funcionamento do CCSP, mas que muitas vezes são “invisíveis” aos olhos do público.

Nele estão sediadas, entre outras, as equipes de elétrica, marcenaria, serralheria e zeladoria, além do Laboratório Gráfico – responsável pela impressão da maioria dos nossos materiais de divulgação –, e o Laboratório de Conservação e Restauro, que se dedica à preservação dos acervos e coleções mantidos pela instituição.

Nos últimos anos, com a criação da Folhetaria – ateliê público de arte impressa – e a implantação de uma unidade do FabLab, o Porão (como é conhecido o Piso 23 de Maio informalmente) tem sido tomado por um intenso movimento de produção artística e de troca de experiências criativas. E agora, em dezembro de 2017, esse dinamismo ganha reforço com a reabertura de um dos palcos mais emblemáticos da cena teatral da cidade: o Espaço Cênico Ademar Guerra.

A sala foi fechada para reforma em dezembro de 2013, após o fim da temporada de O duelo, adaptação do conto do autor russo Anton Tchekhov levada à cena pela mundana companhia (sob direção de Georgette Fadel e com Camila Pitanga no elenco).

Curiosamente, a abertura do espaço em 1994 – antes disso, denominado apenas Porão, ele já havia recebido a adaptação de Áulis, de Eurípedes, por Celso Frateschi, em 1993 –, como lembra o curador de teatro do CCSP, Kil Abreu, se deu também com um texto escrito por Tchekhov, A gaivota, que teve direção de Francisco Medeiros. “O [cenógrafo] J.C. Serroni ocupou o espaço com maciços de concreto e os atores trabalhavam por cima deles. Vendo aquela imensidão toda, a gente pensava: como aquele porão tinha se transformado naquele cenário maravilhoso?”, conta a atriz e curadora de teatro infantojuvenil do CCSP, Lizette Negreiros, que vê a Ademar Guerra como um “espaço de grande potência artística e cenográfica”.

Vislumbrando tal potência, o crítico e então curador de teatro do CCSP, Sebastião Milaré (1945-2014), foi o responsável pela sugestão do nome do diretor paulista Ademar Guerra (1933-1993) à denominação da sala e, mais do que isso, por reivindicar melhorias na infraestrutura de um espaço cuja singular rusticidade de sua arquitetura permitiu, ao longo dos anos, os mais diversos e inusitados usos para criações cênicas, sobretudo aquelas de caráter mais experimental. “Trata-se de uma sala que não se tem igual em São Paulo nem no Brasil inteiro, pois há uma apropriação de um lugar que não foi feito para a cena”, comenta Kil.

De 1994 (data de estreia de A gaivota) em diante, os artistas e as companhias que passaram pela Ademar (não só ligados ao teatro, mas também a outras linguagens – em especial a dança –, como o Balé da Cidade de São Paulo) fizeram dessa apropriação uma espécie de laboratório para o que se produziu de mais relevante no cenário teatral paulistano nas últimas décadas. Grupos como Companhia do Latão, Parlapatões e Cemitério de Automóveis apresentaram ali importantes mostras de seus repertórios. Fernanda D’Umbra, que esteve à frente do Cemitério de Automóveis durante as muitas apresentações do grupo na Ademar, volta agora para a reabertura da sala, assinando a direção da peça Pequenas certezas, da dramaturga mexicana (inédita no Brasil) Bárbara Colio, em cartaz a partir de 2 de dezembro.

Entre janeiro e fevereiro de 2018, além da temporada de Pequenas certezas, o Espaço Ademar – que reabre com seu sistema de iluminação cênica reformado – recebe, conforme adianta Lizette, a remontagem de Fortes batidas, espetáculo criado e estreado no CCSP em 2015, com direção de Pedro Granato e que reproduzia uma balada. E volta a atender, com sua generosa abertura a propostas cênicas fora do comum, uma urgência criativa da classe teatral atual. “O espaço dialoga muito de perto com uma necessidade que é talvez a mais importante da cena contemporânea: o fato de as dramaturgias não caberem mais na caixa preta tradicional”, afirma Kil.

Confira algumas das peças que passaram pela Ademar Guerra desde a sua abertura

Áulis (1993), direção de Celso Frateschi e Elias Andreato
A tragédia mitológica Áulis estreou quando o Espaço Ademar Guerra era conhecido apenas como Porão, em outubro de 1993. Celso Frateschi e Edith Siqueira protagonizavam uma versão do próprio Frasteschi para o texto Ifigênia em Áulis, do autor grego Eurípedes. Na peça, os atores interpretavam o dilema do general Agamenon. Clique aqui para ler reportagem sobre o espetáculo publicada na Folha de S.Paulo na época.

A gaivota (1994), direção de Francisco Medeiros
A gaivota, escrita em 1896 por Anton Tchékhov, foi uma montagem dirigida por Francisco Medeiros, com produção do ator Marco Ricca, e propunha “um mergulho quase físico na alma dos personagens, realçado pela escolha do porão do Centro Cultural (CCSP) como palco do drama”. Clique aqui para ler reportagem sobre o espetáculo publicada na Folha de S.Paulo na época da temporada da peça.

A Dama da Noite (1998), direção de Gilberto Gawronski e Hélio Dias
O monólogo – adaptação do conto homônimo de Caio Fernando Abreu – foi apresentado como parte da mostra da companhia de Gilberto Gawronski, Art in Obra, e trazia o ator e diretor no papel da misteriosa Dana Avalon, que, tendo nascido em um corpo masculino, assume a identidade de gênero feminina. Clique aqui para ler reportagem sobre o espetáculo publicada na Folha de S.Paulo na época da temporada da peça.

Companhia do Latão em Repertório (1999) e Ópera dos vivos (2011)
Além da mostra de repertório apresentada em 1999 – que incluiu os espetáculos Ensaio para Danton, Ensaio sobre o Latão, Santa Joana dos Matadouros e O nome do sujeito –, a Companhia do Latão trouxe sua Ópera dos Vivos ao Espaço Ademar Guerra em 2011. A peça se inspirava na história das Ligas Camponesas surgidas no interior pernambucano em fins dos anos 1950 a partir das chamadas “sociedades mortuárias”, associações de camponeses que se revezavam para comprar caixões e realizar enterros dignos. O tema foi tratado no passado por autores como Antonio Callado e gerou peças ligadas ao CPC (Centros Populares de Cultura), um dos principais movimentos de renovação da arte teatral no país. A versão da Companhia do Latão desenvolveu o assunto no contexto mundial da Guerra Fria e aproximava o trabalho das Ligas Camponesas das jornadas de alfabetização de Paulo Freire.

Mostras de repertório do Cemitério de Automóveis (2000 e 2002)
“Isso foi no ano 2000. Na época, eu era atriz e produtora do Grupo Cemitério de Automóveis. Fizemos ali nossa primeira Mostra de Teatro com 11 peças. Dois anos depois encenamos outras 26 peças. Fazíamos tudo: carregávamos arquibancadas, refletores, infinitos metros de cabos de som e luz, montávamos o cenário, ensaiávamos ali e nos alimentávamos raramente. Se morrêssemos de tanto trabalhar, seria no Porão, e seria lindo. Vivíamos de poesia, música, teatro e cachorro-quente”. (Trecho do texto de Fernanda D’Umbra que acompanha a dramaturgia completa da peça de reinauguração da Ademar Guerra em 2017, Pequenas certezas – o público receberá gratuitamente a publicação, após as sessões da temporada, que se estende de dezembro de 2017 a janeiro de 2018)

PólisSemos (2007), com Grupo Minik Momdo
Contemplada na primeira edição do Programa Municipal de Fomento à Dança da Cidade de São Paulo, a coreografia PólisSemos, do Grupo Minik Momdo, ocupou a Ademar Guerra com “uma metáfora da própria urbanidade, da polis contemporânea e seus simulacros, excrementos, reciclagens, simultaneidades”. Clique aqui para saber mais sobre a coreografia no site oficial do grupo.

Balé da Cidade de São Paulo (2010)
Uma das companhias mais importantes da dança brasileira, o Balé da Cidade de São Paulo se apresentou na Ademar Guerra em algumas ocasiões desde a sua abertura. Em 2010, o grupo trouxe Crônicas do tempo, com direção de Lara Pinheiro e participação dos bailarinos Jaruam Miguez, Raymundo Costa e Liliane de Grammont e do coreógrafo Luiz Fernando Bongiovanni. A coreografia tratava da passagem e da potência do tempo na vida. (Foto: João Mussolin)

Caminos invisibles… La partida (2011), com a Companhia Nova de Teatro
O espetáculo da Companhia Nova de Teatro narrava a trajetória de imigrantes sul-americanos, com destaque para os povos andinos, que deixam seus países em busca de melhores condições de vida e chegam à grande metrópole paulistana. Numa visão contemporânea e emergente sobre os processos migratórios, Caminos invisibles… La partida mesclava música tradicional andina, canto, dança, textos em quéchua e aymará, teatro documental e vídeos. Clique aqui para conferir trechos da peça e entrevista com os integrantes do grupo realizada durante a temporada. (Foto: Acauã Fonseca)

O duelo (2013), com a mundana companhia
Com direção de Georgette Fadel, o espetáculo da mundana companhia propunha uma versão folclórica de O duelo, novela de Anton Tchékhov, com a atriz Camila Pitanga (em foto de Renato Mangolin, ao lado do ator Siviero) e Pascoal da Conceição no elenco. O aspecto rústico das paredes da Ademar e as duas arquibancadas da plateia se fundiam com a atmosfera improvisada do cenário da peça, que remetia às paisagens do sertão cearense, onde o grupo realizou ensaios abertos durante o processo de concepção da montagem. Clique aqui para ler a crítica do espetáculo publicada na Folha de S.Paulo na época.

Créditos
Pesquisa, entrevista e texto: Danilo Satou, Fernando Netto e Vinícius Máximo
Foto de capa: Sossô Parma
Colaboração: Kil Abreu, Lizette Negreiros e Núcleo Memória do CCSP

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