CCSP Dança em Diálogo – Escrever em dança: deslocar o olhar – 3º Ciclo

Escrever em dança: deslocar o olhar é a atual edição do CCSP Dança em Diálogo que, em 2017, tem como foco a dança programada no Centro Cultural São Paulo, sendo analisada pelos integrantes dos encontros (abril a outubro). Como resultado teremos resenhas autorais, que avaliadas e problematizadas pela curadoria – somente em aspectos técnicos da linguagem e de sua clareza – são aqui difundidas. Ao final do programa, pretende-se ver tecida uma rede de vozes e olhares, cada um deles de responsabilidade de cada autor, mediante uma proposta de análise, debate, escrita e difusão sobre dança, descolonizando-se abordagens mediantes discursos diversos sobre a arte, seus contextos, história e contemporaneidade.

Em agosto, os encontros se voltaram para as questões da investigação/pesquisa em dança, a partir de uma obra em processo: O olhar risível do corpo, de Diego Mejia e Ronaldo Aguiar, acolhida no programa de residência artística da curadoria de dança do CCSP. As resenhas resultantes desse ciclo se referem à análise de um ensaio aberto e não do espetáculo finalizado que viria a estrear em setembro no evento CCSP Semanas de Dança 2017.

Agosto: 3º Ciclo: PESQUISAR? EXPERIMENTAR? CRIAR
Resenhas sobre o ensaio aberto da obra O olhar risível do corpo, de Diego Mejia e Ronaldo Aguiar – agosto de 2017

*As resenhas publicadas são de inteira responsabilidade de seus autores, expressando exclusivamente as suas opiniões.

 

**Próximos ciclos:
4º Ciclo: CCSP SEMANAS DE DANÇA 2017 | O quê? Como? Para quem?
5º Ciclo: CCSP Dança em Diálogo (com o teatro)

 

O olhar risível do corpo, por Jonathas Leite

 

Analisar um ensaio, ou seja, parte de um processo que culminará numa obra de dança, obriga a fitar os olhos numa outra direção, para além da espetacularidade final. A priori é comum assistir a um ensaio e sair com algumas dúvidas, principalmente quando há ausência de figurino, no qual a trilha sonora, assim também como o corpo, ainda está no campo da investigação. Um ensaio é ainda um lugar de incertezas que despertam outras sensações, por isso é fundamental coletar o que foi visto, ouvido e sentido para refletir sobre as possíveis lacunas existentes até aquele momento. Antes de assistir ao ensaio do espetáculo O olhar risível do Corpo, é natural que se questione: o que os criadores pretendem com o tema?

A palavra-chave é compreender o significado de risível. É aquilo que causa ou que provoca riso, podendo ser associado com o ridículo, o grotesco ou o cômico. Logo em seguida, você pode questionar que olhar é esse e que corpo é esse. Seria o olhar sobre/do/para um corpo cômico?

No centro da Sala de Ensaio 1, dois corpos estão entregues um no outro, mas o processo de criar/recriar, inventar/reinventar, projetar, transformar, produzir e, principalmente, arriscar para encontrar o desconhecido os envolve numa penumbra. O novo não é fácil. Ainda na primeira cena, o contato entre os corpos provoca formas homogêneas. A sensação é que eles se atravessam, remetendo à criação ou ao nascimento de algo, corpos masculinos gerando um ser. A relação gera fusão ao ponto de confundir nosso olhar, conduzido por um som erudito instrumental com uma voz lírica de fundo, deixando o ambiente cênico suave. São corpos diferentes um do outro, versáteis e que, dispostos na cena, transgridem, se olham, se tocam, se somam, se experimentam e se investigam a fim de alcançar uma nova maneira de sentir e refletir.

Duas histórias decidem se unir no aqui e agora para trilhar o mesmo percurso entre o picadeiro e o palco. É uma escolha difícil, nos dias atuais, onde a individualidade e a necessidade de sobrevivência estão afloradas. Mesmo assim, é visível a entrega de Diego Mejia e Ronaldo Aguiar como intérpretes-criadores e diretores.

Os dois lançam seus corpos executando sequências de passos de variados estilos de dança. Observa-se nesse momento um diálogo com técnica de clown – o momento mais divertido foi uma caricatura do funk brasileiro. Em seguida, ambos sentam num banco na lateral da sala.

Uma pausa é dada nesse corpo cômico que dança e surge a voz. Ela revela situações inusitadas e engraçadas ocorridas na vida deles enquanto dançarinos até que, envolvidos por uma música latina, ambos se levantam e se movimentam pelo espaço com elementos de saltos e acrobacias simples.

Transitando com fluidez principalmente pelo nível baixo, eles acrescentam o nariz de palhaço na cena iniciando um diálogo através do grammelot – uma técnica satírica/teatral na qual o ator cria uma espécie de discurso usando elementos onomatopeicos pertencentes ao sotaque e às maneiras de falar de uma determinada língua sem necessariamente estar dizendo qualquer palavra inteligível.

Antes da última cena, Aguiar dança um solo que, até o momento, não está ainda fechado. Logo em seguida, Mejia senta no banco e pede, como um professor de dança rígido, para Aguiar executar alguns movimentos que começam lentos e leves e, em seguida, se tornam acelerados, pesados e desconexos. Aguiar parece uma marionete nas mãos de Mejia, os movimentos geram quedas que despertam risos e, ao mesmo tempo, remetem a como pode ser trágico e nada engraçado quando alguém tropeça quando anda na rua – mesmo que, do lado de fora, sintamos imediatamente alguma vontade de rir.

O ensaio finaliza na cena anterior, pois o fim ainda estava em processo de investigação final.

 

O olhar risível do corpo, por Josie Berezin

 

O olhar risível do corpo é a obra originada do projeto de residência de Diego Mejia e Ronaldo Aguiar no Centro Cultural São Paulo, ambos, artistas que trabalham com as linguagens da dança e do circo. O projeto se desenvolveu a partir de abril de 2017, quando os artistas deram início à pesquisa teórica e prática da linguagem do palhaço, e finalizou em setembro com a estréia e temporada do espetáculo no CCSP Semanas de Dança 2017.

No encontro de agosto do Dança em Diálogo a dupla compartilhou um ensaio do processo de criação, em estado bastante avançado porém ainda em fase de rever escolhas, construir e reconstruir cenas, movimentações e sequências. Assistir obras em processo conta com a grande vantagem de vê-las ainda abertas para serem pensadas e questionadas, ficando no ar um sentimento de busca, inquietação, incompletude. E participar deste processo enquanto público e “críticos-em-processo”, oferecendo olhares e perguntas, e ao mesmo tempo tendo a chance de observar formas de fazer, desfazer e/ou refazer dança, e aprender com as soluções encontradas (ou não) é algo rico para ambos os lados, lembrando o dito popular de que “é errando que se aprende”.

Mas talvez este sentimento de incompletude estivesse presente não só pelo fato de se tratar de uma fase do processo. O personagem do palhaço, trazido à cena pelos artistas, também apresenta essa característica, e se aproveita dela para se conectar com a plateia. Como a dupla discute no projeto de trabalho, o palhaço tem esta grande vantagem de poder se assumir imperfeito e vulnerável, de se colocar no papel do ridículo, e gerar identificação e empatia com o público a partir disso. O artista de circo americano Avner Eisenberg, trazido a São Paulo pela mostra Circos, do Sesc, enfatiza que “nos dizem para não fracassar nunca, mas o palhaço deve fracassar, e depois sobreviver”. Pois é o fracasso que gera situações cômicas, embaraçadas, desajeitadas, pedindo o improviso. O fracasso, por mais que pareça ser comum e talvez até frequente para muitos, é o palhaço o personagem autorizado a ser o porta-voz desta experiência, como alguém que, por tantas razões, não se enquadra nos padrões de sucesso exigidos pelo sistema. E é a encenação de situações comuns e ordinárias, como as de fracasso, que geram proximidade entre atores e espectadores – algo de importância especial neste projeto.

Dessa forma, Aguiar e Mejia passam por diversas situações de claras tentativas falhas durante sua dança-atuação, e até se valem do relato oral para contar cenas em que, tentando fazer o melhor de si nos palcos, falharam cômica e vergonhosamente. Também retratam cenas em que exibem suas habilidades como bailarinos, porém, tal como as imagens de estereótipos tão conhecidas de bailarinos populares e clássicos, e de maneira tão jocosa e descontextualizada, que intencionalmente acabam demonstrando o oposto: o lado engraçado e ridículo de um bailarino que se prende às vazias formas estéticas, que só se preocupa com a sua vaidade e não se importa minimamente com o público.

Por este ponto de vista, o personagem de circo se mostra como uma interessante referência neste espetáculo. No projeto de Aguiar e Mejia fica claro que o relevante é o questionar, se afastar e desconstruir a imagem do bailarino, especialmente do bailarino de companhias clássicas, que tem um corpo treinado e bem sucedido, e que alcança a virtuose por meio da técnica. Este é um papel já vivido muitas vezes por Mejia, e na oportunidade de conversar com a dupla, entende-se que a intenção do projeto é justamente colocar à mostra os elementos clássicos que parecem desajustados na atualidade, e apontar as brechas que enxergam no ballet diante do contexto da contemporaneidade. Tudo isso na forma de crítica bem humorada, e costurando a relação entre os artistas e seu venerável público (relação esta quase inexistente no ballet, vale dizer). E quem melhor para fazer isso do que o palhaço?

Mais uma vez usando as palavras da dupla em seu projeto, “a virtuose técnica para a qual [o bailarino] foi treinado ao longo de sua formação, onde os músculos são mais importantes que o olhar, a troca, o jogo e que distanciam da vida real, vai se diluir e se transformar em um novo corpo”. Se aproveitando de “partituras mestiças e híbridas” (NAVAS, 2013), ou destas e daquelas técnicas de corpo, portanto, Aguiar e Mejia unem seus saberes artísticos e constroem este novo corpo, tanto de bailarino quanto de palhaço.

E assim, assistimos a uma performance realizada ora por bailarinos, ora por palhaços, e ora, ainda, por bailarinos-palhaços, que com habilidades técnicas diversas nos apresentam um espetáculo engraçado e ao mesmo crítico, que nos traz motivos para rir e também para pensar.

 

O olhar risível do corpo, por Paula Matthews

 

Lendo o nome do espetáculo de Diego Mejia e Ronaldo Aguiar — em residência no Centro Cultural São Paulo, e cujo processo de criação foi compartilhado dentro do CCSP Dança em Diálogo 2017 de agosto — já é possível imaginar que a obra em construção teria alguma coisa que nos faria rir. Talvez o título chamasse o espectador para um outro olhar do corpo, o olhar que poderia ser risível, engraçado, e não mostrando o corpo de bailarinos que estamos acostumados a ver em espetáculos de dança, um corpo trabalhado, elegante, virtuoso, mas talvez um corpo comum.

Ao entrar na sala, encontramos uma dupla que pode parecer engraçada; um bailarino muito alto e o outro baixo. A semelhança com antigas duplas de comédia aumenta a expectativa cômica do espetáculo, de que ele nos arrancaria risos. E não foi diferente. Durante a apresentação, diferentemente de outras apresentações de dança, que levam o nosso corpo a refletir, chorar, ficar tenso, nesta apresentação, o público fica muito à vontade, dando muitas risadas: a dupla soube misturar interessantemente dança com humor.

Seus corpos eram bem diferentes e vindos de experiências diferentes em dança. “Na dança, a discussão sobre mestiçagem e/ou miscigenação pode apontar para a mistura de elementos de que se compõe a própria dança, realizada por intérpretes que trazem em sua formação, a força do mix de muitas memórias“ (LOUPPE, 2000). Foi interessante observar como os intérpretes trabalharam o peso, e o contato e improvisação, mesmo com esses corpos híbridos, conseguiram estabelecer uma tal relação e conexão, que se tornam um só no palco, acessando o público com a mensagem que queriam transmitir.

Na obra, eles usam a fala, a dança, histórias pessoais com um certo tom de crítica ao que é virtuoso — pois o humor sempre tem uma crítica por trás —, e Ronaldo Aguiar soube trabalhar muito bem utilizando sua experiência como palhaço, trazendo esse humor em cena, fazendo caras e bocas e algumas piadas, além de dançar.

Este é um espetáculo que realmente leva o nosso corpo ao riso, não só pela aparência dos dois, mas pelo conjunto de fala e dança e algumas trapalhadas que acontecem em cena. Um espetáculo simples, mas diferente do que estamos acostumados a ver. E, interessante, também é apropriado para todos os públicos: hoje em dia estamos muito carentes de dança para crianças — ainda que tenhamos a Cia. Balangandança e outras — mas, talvez, investindo mais nesse público, os intérpretes pudessem também arrancar muitos risos das crianças.

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