Podcast “Sem Título” – Transcrição e referências bibliográficas – Episódio #03

Podcast “Sem Título”

Você já parou para pensar que toda interação humana é uma história em potencial? Ao mesmo tempo em que a vida acontece, grandes e pequenos acontecimentos surgem e se dissipam, constantemente. Pensando nisso, o novo podcast do Centro Cultural São Paulo, “Sem Título”, conta para o público histórias, anedotas, acontecimentos, fatos e curiosidades ainda não contados, que se passaram dentro da instituição, e que marcaram, de alguma forma, a vida de seus funcionários.

No terceiro episódio, Tessi Ferreira conversou com Rafael Barbosa, coordenador da Missão de Pesquisas Folclóricas de Mário de Andrade, que faz parte da Supervisão de Acervos. 

Para ouvir o episódio na íntegra clique aqui e acesse o Spotify do CCSP. Também disponível no Google Podcasts e na Radio Public.

No canal do YouTube do CCSP você confere a entrevista completa com Victor Fernandes.  

Episódio #03 – Registrar, reconhecer, revelar

Notas e referências bibliográficas 

1. Exposição “Cantos Populares do Brasil – A Missão de Mário de Andrade.

Fonte: Acervo CCSP

2. Exposição “Cantos Populares do Brasil – A Missão de Mário de Andrade.

Fonte: Acervo CCSP

3. Exposição “Cantos Populares do Brasil – A Missão de Mário de Andrade.

Fonte: Acervo CCSP

4. Site do Acervo do CCSP, onde é possível acessar todos os materiais da Missão 

5. Cantos utilizados no episódio: 

– A fulo, a fulo do vapor

– Coco solto

– Mina Tere Tere

– O boi (Oh de casa e de fora)

– Sambinha

– Fala roseira

Transcrição completa do episódio 

Abre aspas

Sem Título

Fecha aspas

[Sabrina] Um dia, um garoto junto de seu pai saiu de São Paulo e viajou até o interior do Maranhão. A viagem foi longa, porque o destino ficava nas profundezas do estado nordestino. Em algum momento, o menino atravessou um portal, e do outro lado encontrou seus ancestrais. Olhou para os pés e viu a terra batida no chão. Olhou para o alto e viu as estrelas estampadas no céu limpo. Um dia um menino viajou para dentro de si, e também vislumbrou o seu eu do futuro, no interior do Maranhão. 

Olá, eu sou a Tessi Ferreira, estagiária da Comunicação do CCSP, e gostaria de dar as boas vindas ao “Sem Título”, um podcast do Centro Cultural São Paulo que narra histórias, fatos e curiosidades ainda não contados, que se passaram dentro da instituição, e marcaram, de alguma forma, a vida de seus funcionários. Se você está chegando agora, te convido a visitar também os episódios anteriores. 

A voz que você ouviu antes da minha apresentação é da Sabrina Godoy, que estará presente em outros momentos do episódio. 

M I S S Ã O 

Missão 

Etimologia é a ciência que estuda a origem das palavras. Etimologicamente, a palavra missão deriva do latim missio, e pode ter vários significados. Mas, para nós, o significado que mais importa é o de enviar. Enviar uma ou mais pessoas para uma tarefa, um dever, algo a se cumprir, geralmente em outro local ou território. 

Começo com essa definição porque hoje estamos no Acervo Histórico da Discoteca Oneyda Alvarenga do CCSP, mas, mais especificamente, em uma parte do acervo chamada Missão de Pesquisas Folclóricas de Mário de Andrade. Para esse episódio, contei com a participação do Rafael Barbosa, atual coordenador desta parte do acervo, ou como ele preferiu dizer: um zelador de memória, de pessoas. 

Antes de mais nada, é importante dizer pra você que está ouvindo, do que se trata esse acervo, o que foi, afinal, a Missão de Mário de Andrade. Resgatando o significado da palavra: quem foi enviado? Para onde? Com que propósito? 

[Rafael] O acervo da Missão foi constituído por um projeto encabeçado pelo Mário de Andrade, muito lembrado como um literato, mas ele tinha formação de músico. Ele era um tipo de intelectual que se denominava na época de polígrafo, aquele sujeito que estudava várias coisas e escrevia sobre vários assuntos, mas ele gostava muito de música, então a Missão tem como premissa fundamental gravar e registrar em disco, os modos de cantar e também os modos de dançar e brincar do povo brasileiro. 

Ou seja, em mais de 30 horas de música, e também entre outros materiais como fotografias, filmografia e anotações de campo, estão as tradições e parte da vasta diversidade cultural do povo brasileiro, especialmente das regiões Norte e Nordeste do país, por onde o grupo de Mário de Andrade passou. 

A missão não foi apenas um projeto etnográfico qualquer, mas segundo o Rafael, teve imensa projeção do ponto de vista cultural e político, e por isso, também é interessante que você saiba em qual período e contexto ela foi realizada. 

[Rafael] A Missão ela parte aqui de São Paulo em fevereiro de 1938, e ela retora pra SP em meados de agosto, então são basicamente seis meses de trabalho de campo. Era um momento que o Brasil passava por grandes transformações sociais e econômicas, com impactos culturais. Isso é até um pouco dialético, porque o Mário é associado diretamente ao movimento modernista, mas isso não quer dizer que houvesse uma adesão imediata a tudo aquilo que a modernidade trazia, ela trazia coisas positivas, mas ao mesmo tempo alguns perigos, e o Mário, quando organiza essa Missão, ele tava muito preocupado com alguns perigos, e os perigos estavam associados ao processo modernizador. Ele é um processo violento, principalmente para culturas tradicionais. A gente também não pode entender modernização sem entender seus marcos históricos. Por exemplo, aquele povo que o Mário tava gravando era um povo que tava em grande parte escravizado até cinquenta anos antes da Missão, a abolição da escravatura se dá em 1888. Então em 38, se completaria o cinquentenário da abolição, e essas pessoas foram paulatinamente marginalizadas, desde a instituição da lei Eusébio de Queiroz e desde a Lei de Terras. O que que a Lei de Terras trouxe de novidade? A terra passou a ter valor em dinheiro, ate 1850 você não adquiria terra, a terra era um patrimônio da Coroa, então ninguém era dono da terra, o rei te dava a terra, e a partir de 1850, com a Lei de Terras você tinha que comprar a terra. Então há um processo lento e paulatino de expulsão do povo da terra, o que o povo vai fazer sem terra? Ele vai vender a força de trabalho nas cidades, vai começar a ser marginalizado. 

Talvez, uma das coisas mais importantes para entendermos sobre a memória é que ela nunca está descolada de um tempo e de um espaço. A Missão foi, essencialmente, uma expedição em busca do registro da memória, em um determinado tempo, e em um determinado espaço, de um determinado povo. Processo que foi atravessado pela ascensão da modernidade e das novas tecnologias, e que também coexistiu com a marginalização de diversos grupos sociais em várias partes do país. 

[Sabrina] O menino sonhou muitas e muitas vezes com o que viu naquela viagem com o pai. Lembrava-se pouco dos detalhes, mas ao adormecer, sentia a mesma sensação que percorreu seu espírito durante os dias na estrada, na casa de sua família e na companhia de seu progenitor. A brisa no interior, que o mar soprava de algum lugar do litoral maranhense. O menino se lembrava de tudo aquilo como se tivesse sonhado. E uma felicidade o invadia quando ele lembrava que tudo tinha sido verdade. E fazia parte de quem ele é, e de quem se tornará. 

Pro Rafael, a Missão de Pesquisas traz uma dimensão social do sujeito que está fazendo cultura. Isso significa que este foi um projeto que não só gravou, registrou e documentou traços culturais, mas que reconheceu, acima de tudo, a identidade daquelas indivíduos que estavam fazendo cultura. Quase que fazendo uma pequena biografia dessas pessoas. Revelando o nome, os rostos, as vozes… 

[Rafael] Quando você olha pras instituições de memoria, essencialmente, a primeira imagem pelo menos que me chegou durante a formação escolar é aquele quadro do Renascimento, a arte canônica por excelência, a arte europeia por excelência, arte com autoria. Isso eu não falo por mim, depois, na minha formação acadêmica eu fui ler alguns poucos autores que falavam sobre teoria da arte e eu gostei muito do que eu li do Mário Pedrosa, e ele foi importante pra eu entender que essa concepção da autoria é uma concepção burguesa da arte. Mesmo a arte canônica do Renascimento, se você analisa a historia da arte socialmente você vai saber que ninguém pintava sozinho, os mestres ensinavam os aprendizes e os aprendizes estavam pintando junto com ele. Então aquela arte que em tese tem um autor, ela não tem só um autor, ela tem vários autores, mas só se atribui um autor. 

[Sabrina] Já crescido, um homem observa obras de arte em museus, galerias e outros lugares. Embora todas aquelas cores, formas e texturas o encantem de alguma forma, existe uma linha quase imperceptível onde seus sapatos esbarram todas as vezes que ele se aproxima de tais produções. 

[Rafael] E quando eu cheguei aqui no acervo histórico eu me deparei do ponto de vista prático e sensível com a dimensão social da arte mesmo, uma arte que eu sabia quem fazia, porque talvez aquela cantiga, aquele ponto de Xangô, de tambor de mina, foi passado de geração pra geração. Eu não posso falar quem é o ator daquilo dali, talvez, mas eu sei quem tá cantando, então do ponto de vista pessoal e íntimo, isso pra mim é muito marcante, porque é uma dimensão objetiva, prática, e até material, por mais que a gente fale em registros musicais e seja patrimônio imaterial nesse sentido, pra mim é a prova de que o Mário Pedrosa tava certo. 

[Sabrina] Em meados de 2007 o homem chega ao Centro Cultural São Paulo. Espaço este que seria como um segundo lar, por muito tempo. E em certo momento se depara com uma exposição, assim como tantas outras que passariam por aquele espaço. Mas essa tinha algo de especial, algo de afetivo, um frescor, talvez… 

[Rafael] Havia uma exposição num espaço aqui, que inclusive recebe o mesmo nome, Espaço Missão, mas ali tinha um espaço pra uma exposição permanente, e havia um grande painel, com fotografias, uma montagem bem interessante, mas eram os informantes da Missão, as pessoas que cantaram de fato, e aquilo me foi muito impactante, porque desde o primeiro momento eu me senti representado nesse acervo, porque meu pai é maranhense, eu já conheci o interior do Maranhão, então eu me senti em casa, e enfim, o Centro Cultural é minha casa, o acervo histórico também é minha casa. 

O homem que começou este episódio como menino chama-se Rafael. Mas como ele, existem muitos outros. O homem encontrou naqueles painéis uma faceta do garoto que visitou o Maranhão com seu pai, há tanto tempo atrás. Pessoas que se pareciam com ele, pessoas que não eram anônimas. Dispostos em painéis e com suas vozes em algumas caixas de som, os cantantes informantes encantadores ocuparam por algum tempo um espaço especial, em um Centro Cultural no centro da imensidão do que é São Paulo. 

[Rafael] Como que funcionava essa exposição? Você tinha na época um diskman e podia ouvir um tema, e você ia andando pela exposição e tinha uma fotografia do informante em tamanho real, então podia-se ouvir aquele tema de cabocolinho e ver a pessoa que cantou, em tamanho real na sua frente, então você fazia esse percurso, vendo, ouvindo a cantiga, ouvindo o tema musical e olhando pro informante. Você sabia o nome dele e o que ele tava cantando. 

Acrescentando alguns detalhes a descrição do Rafael, a exposição se chamava: Cantos Populares do Brasil – A Missão de Mário de Andrade. Essa parte descrita até agora eram algumas das seções da exposição, chamadas de O Painel dos Informantes, seguida de Os Grupos em Destaque e o Grande Painel. Além disso, o público também podia ver os baús levados para a Missão de Pesquisas Dentro de algumas vitrines, os equipamentos de gravação da equipe, e os instrumentos utilizados pelos informantes. 

Organizados em  gavetas, outros documentos também foram disponibilizados para a contemplação, como fotografias, cartas, anotações de campo e recortes de revistas. Ou seja, a intenção da exposição era realmente trazer para o público um compilado do que foi a Missão de Pesquisas Folclóricas. 

A intenção e a missão de Mário de Andrade e de Oneyda Alvarenga foram ousadas e nada ingênuas, no melhor sentido do termo. O movimento feito em 1938 continuou reverberando durante muitas décadas. E permanece. E talvez, essa também seja uma característica da memória social e cultural, ela atravessa gerações e reverbera em como registramos a história da sociedade ao longo dos anos. E é claro que esse também é um espaço de disputa. 

[Rafael] Então organizar uma Missão de Pesquisas Folclóricas, baseadas na fonografia que é um recurso moderno, na filmografia que é um outro recurso moderno, fotografia, enfim, era usar dialeticamente a modernidade a favor da cultura, porque ele tava consciente das contradições que a modernização acarretava.

O Rafael também me contou que Oneyda Alvarenga – mulher branca, de olhos e cabelos escuros, que dentre muitas coisas foi musicóloga, etnógrafa e jornalista, também grande parceira de Mário de Andrade em sua Missão, organizou durante o projeto fichas que reuniam informações básicas sobre os informantes, como nome, idade, profissão, entre outras. Este registro foi e é, sem dúvida, fundamental, mas não é suficiente. Isso porque fichas e descrições talvez não deem conta da dimensão humana e afetiva que esses encontros possuem. O encontro entre Rafael e os informantes fixados na exposição. O encontro entre Rafael e seus antepassados. O encontro entre o antes e o agora. O encontro entre quem se é e quem sabe, o encontro com a nossa, ou nossas, grandes e pequenas missões neste mundo. 

Por fim, melhor do que qualquer fechamento que eu poderia elaborar, nosso convidado fez uma aproximação generosa entre este podcast e tudo isso que foi dito até aqui, neste episódio

[Rafael] É bem curioso que o programa se chame “Sem Título”, né, porque do ponto de vista da história intelectual e onde se inseria os estudos das culturas populares ou folclóricas, como se falava até os anos 60, geralmente a cultura popular era entendida como aquela cultura sem autoria, sem dono, sem título, talvez. E a Missão do Mário de Andrade e da Oneyda Alvarenga, que foi a primeira diretora da Discoteca, que foi a pessoa responsável por guardar esse acervo, extrovertê-lo e preservá-lo ao longo dos anos, se preocupou justamente em dar nome ao povo, àqueles e àquelas que faziam as músicas folclóricas, as danças folclóricas, talvez então dando um título, né, dando nome, literalmente, ao povo. 

Esse foi o terceiro episódio do podcast “Sem Título”, do Centro Cultural São Paulo. Em breve, novos episódios estarão no ar, trazendo histórias de outros acervos da instituição. 

Informações mais detalhadas sobre os acervos, visitação, notas deste episódio e outros materiais, você encontra em nosso site: centrocultural.sp.gov.br

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Este episódio teve 

Roteiro, pesquisa e narração de Tessi Ferreira

Colaboração de Rafael Barbosa 

Captação de áudio de Eduardo Neves 

Captação de vídeo de Alessandro Santos

Edição de áudio de Rubens Gonçalves 

Edição de vídeo de Yago Sivi 

Arte gráfica de Tamiris Viana e Diego Claudino 

Revisão de texto de Isabela Pretti 

Voz de Sabrina Godoy 

Muito obrigada e até a próxima! 

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