O limite sempre em mente: a distopia na literatura e no cinema

O desconhecimento acerca do futuro, ao mesmo tempo que gera medo e incerteza em todos, permite a elaboração de uma série de hipóteses a respeito do que está – ou não – por vir. E justamente uma estimativa fictícia daquilo que poderia ser um lugar (-topos) ruim (dis-) para se viver é o que compõe o fio condutor do gênero distópico, contemplado principalmente na literatura e no cinema, como na mostra Distopia, em cartaz no CCSP em fevereiro de 2019.

Uma distopia geralmente apresenta uma descrição ficcional de uma sociedade que vai na contramão do ideal completo (da utopia) e costuma se passar no futuro, em um contexto no qual o Estado se utiliza da razão para disseminar a violência e controlar as massas a fim de perpetuar a desigualdade. Esse subgênero da ficção científica, consagrado na literatura por obras como Nós (1924), de Yevgeny Zamyatin, Admirável Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley, e 1984 (1949), de George Orwell, alcança notoriedade crítica e difusão popular consideravelmente maiores no período pós-guerras, sendo lido, adaptado, assistido e discutido até os dias de hoje.

Na literatura, a primeira obra do gênero é Utopia (1516), do inglês Thomas More, que, de um ponto de vista “humanista”, discorre sobre a viagem de Rafael Hitlodeu a este não lugar ao qual o título faz referência. Enquanto no primeiro volume o autor desenvolve uma crítica à Inglaterra do século XVI, no contexto dos cercamentos legais e das perseguições religiosas, no segundo, More apresenta a República da Utopia, onde a intolerância e o fanatismo religioso eram punidos com o exílio e a escravidão e diversas crenças poderiam existir naquilo que o livro chama de “harmonia ecumênica”. O livro inspirou estudiosos do século XIX, como Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) e Charles Fourier (1772-1837), que ficaram conhecidos como socialistas utópicos anos mais tarde. Na ordem existente no segundo volume do livro, a eutanásia e o divórcio são permitidos pelo Estado, não existe a ideia de privacidade e, em contrapartida, o ateísmo é desprezado enquanto as mulheres devem confessar seus pecados aos homens – estabelecendo, assim, uma perpetuação da desigualdade de gênero e uma distância grande de uma completa (ou equiparada) liberdade.

Se analisadas atualmente por nós – e, portanto, de forma anacrônica –, as ideias podem até se mostrar primitivas ou desorganizadas, mas, além de inspirarem leis que serviram de base para governos seguintes, como o de Vasco de Quiroga (1531-1535), no México, influenciaram diversas produções literárias e até mesmo cinematográficas que vieram mais tarde, sobretudo no século XX, quando regimes totalitários explicitamente vieram à tona ao redor do mundo – e, como não poderia deixar de ser, isto se refletiu na arte também.

Um dos primeiros filmes do gênero distópico é um clássico da corrente atualmente conhecida como expressionismo alemão: Metropolis (1927), que apresenta de modo bastante gráfico a desigualdade na separação física entre a classe trabalhadora e os planejadores da cidade, sendo que a história clássica de um amor impossível – entre indivíduos de classes distintas – é transpassada pela previsão de chegada de um salvador capaz de mediar a disparidade entre os dois grupos.

Publicado em 1953 e adaptado para o cinema em 1966, Fahreinheit 451, de Ray Bradbury, tornou-se um clássico do gênero, sendo um dos principais representantes da força com a qual um governo pode ser capaz de conduzir as ideias e os valores de uma sociedade. A obra acompanha Guy Montag, um homem que trabalha como “bombeiro” (que, naquelas circunstâncias, é responsável por atear fogo em livros – o que explica o título, sendo 451ºF a temperatura de combustão do papel) e passa a questionar sua individualidade e a enxergar os livros, banidos daquele contexto, como uma ferramenta essencial para compreender as estruturas hierárquicas às quais sua sociedade está submetida.

Na década de 1980, Mad Max 2 – A Caçada Continua (1981) revolucionou a ficção científica – e, mais especificamente, a distopia – ao quebrar recordes de bilheteria e apresentar um universo pós-apocalíptico muito verossímil, mesmo com baixo orçamento em sua produção, que retrata uma guerra pelo petróleo entre grandes potências mundiais. Outros filmes, como Blade Runner, o Caçador de Androides (1982) e Brazil, o Filme (1985), também transformaram as técnicas cinematográficas no campo da ficção científica unindo temáticas policiais a ambientes distópicos, ainda que ambos não tenham sido tão bem recebidos pela crítica especializada da época. No primeiro, a demonstração de uma modernização de equipamentos considerados ultrapassados ou fora da norma sobressai na produção, que cria uma hipótese para aquilo que viria a ser a cidade de Los Angeles nos EUA em 2019, quando um policial é designado para eliminar replicantes (seres gerados por bioengenharia). Já o longa-metragem de 1985 acompanha um protagonista que se apaixona por uma mulher ligada a grupos terroristas, ao mesmo tempo que o Estado governa os habitantes daquele local por fichas e cartões de créditos, com o estabelecimento, ao longo do filme, de vários paralelos diretos daquela situação com a ditadura militar brasileira, que estava em vias de terminar na mesma época do lançamento do filme.

Na televisão, a adaptação do romance O Conto da Aia (1985), de Margaret Atwood, para uma série em 2017 (distribuída no Brasil com o título original The Handmaid’s Tale, a partir de fevereiro de 2019 pelo GloboPlay) fez com que a obra se tornasse um dos livros de ficção mais vendidos dos últimos anos no mundo todo, trazendo discussões acerca de pautas como o feminismo, a misoginia e a violência contra a mulher. Nesta distopia, na qual a taxa de fertilidade caiu por conta de intensas mudanças climáticas, as mulheres de Gilead, país fictício governado por um sistema caracterizado por uma teonomia religiosa militar, são divididas em três categorias dentro de casa: as Marthas, encarregadas pela limpeza e pela manutenção da casa; as Esposas, incumbidas de tricotar, cuidar da organização e da harmonia da casa; e, finalmente, as Aias, responsáveis por gerar filhos a partir de “cerimônias” em que elas são estupradas pelo homem responsável pela propriedade. Tanto no filme quanto no livro a complexidade das personagens, especialmente da protagonista Offred (nomeada dessa forma por pertencer ao comandante Fred), revela como o governo controla a mente e o corpo dos cidadãos.

Em uma roupagem menos extrema e mais bem-humorada, com piadas que transitam entre o nonsense e o humor negro e um visual criado a partir das simetrias comuns à montagem das obras de Wes Anderson, o filme mais recente presente na mostra é Ilha dos Cachorros (2018), indicado ao Oscar 2019 na categoria de Melhor Animação. A narrativa se desenvolve logo após o prefeito corrupto da cidade de Megasaki aprovar uma lei que proíbe os cachorros de morarem no lugar, fazendo com que todos os cães sejam enviados para uma ilha que serve de depósito de lixo. O filho do próprio prefeito, porém, não aceita se separar de seu animal de estimação e vai até a ilha resgatar seu cachorro, criando um embate com sua família – e, por extensão, com o governo – e abrindo debates a respeito da xenofobia, da militarização e da polarização entre os habitantes da cidade.

Os efeitos da barbárie e a forma como eles se manifestam em nossa sociedade podem ser vistos como consequências dos avanços tecnológicos, bem como da submissão da cultura ao financiamento e à distribuição das obras – assuntos que, retratados com enfoques diferentes, permeiam a maior parte das narrativas distópicas e engendram debates a respeito da nossa relação com o Estado, com a nossa rotina e com outros indivíduos.

O contato com situações radicais como essas não se propõe a chocar os espectadores e leitores de forma gratuita, e muito menos fazer apologias ao totalitarismo e à violência. Pelo contrário. A ideia é construir um retrato em negativo daquilo que seria nocivo ao ser humano e precisa ser constantemente colocado em destaque para que possamos nos distanciar dessas situações e ponderar nossas escolhas que, de uma forma ou de outra, geram consequências a pessoas que talvez nunca cheguemos a conhecer.

Uma das intenções, portanto, é aproximar arte e sociedade e fornecer um diagnóstico do presente que identifique os agentes responsáveis por limitar nosso pensamento e traga alguma lucidez no contato com uma situação tão extrema. Negar ou neutralizar a existência da violência em nossa sociedade atual, por exemplo, é tão ilusório quanto eleger um único inimigo e esperar que seu fim resolva todos os problemas – de ordem política ou social – e é nesses jogos de aproximação e distanciamento de uma realidade alternativa que a ficção extrapola o lugar comum do entretenimento e nos entrega a possibilidade de imaginarmos aquilo que desejamos para os outros e para nós mesmos, assim como aquilo que, com certeza, não desejamos.

 

Clique aqui para consultar os livros dos autores citados no texto disponíveis nas Bibliotecas do CCSP

+Para saber mais:

ATWOOD, Margaret. O Conto da Aia. São Paulo: Editora Rocco, 2016.
BRADBURY, Ray. Fahreinheit 451. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2013.
MORE, Thomas. Utopia. São Paulo: Penguin-Companhia, 2018.

 

Texto: João Vitor Guimarães
Revisão: Paulo Vinício de Brito
Ilustração: Fabrício Franqueira (baseado em foto de divulgação do filme “THX 1138”)

 

*Publicado em 12 de fevereiro de 2019

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