LUCAS MAYOR (São Paulo, 1982)
É dramaturgo, diretor e professor. Publicou três livros de crônicas: “Viagem ao redor da sala”, “Little Italy” e “Coisas pelas quais vale a pena viver” (todos lançados pela Bar Editora). É sócio, ao lado de Mário Bortolotto e Marcos Gomes, do Teatro Cemitério de Automóveis. Há sete anos faz a curadoria do projeto “Terça em Cena”, voltado à difusão de peças curtas da dramaturgia contemporânea.
DOMINGOS OLIVEIRA (Rio de Janeiro/1936 – Rio de Janeiro/2019)
Foi um ator, diretor, dramaturgo de cinema e teatro, poeta e cineasta brasileiro. Acreditando que “o teatro tem o tamanho da vida”, Domingos Oliveira julgava que nele o homem pode “exercer a forma mais interessante da sabedoria”, “a loucura sob controle”. Escreveu para o teatro, o cinema e a TV. Entre suas obras teatrais estão: “Todo mundo tem problemas (sexuais)”, “Separações”, “As guerreiras do amor”, “Assunto de família”.
Você não sabe, mas quando estive no Rio, ano passado, visitei seu antigo apartamento em Copacabana. Fiz uma foto dele e é pra essa foto que eu fiquei olhando esses dias enquanto pensava em coisas que eu queria te dizer. Eu imaginava, antes da foto, que o apartamento, e mesmo a rua, eram totalmente diferentes. A rua parece uma rua qualquer do Rio de Janeiro e o apartamento parece como qualquer outro apartamento.
Pensei em te ligar e dizer que estava em frente ao seu apartamento e que gostaria de pode subir um instante. E então eu lembrei que não tenho seu número e que por isso não posso te ligar. Lembrei em seguida, e isso é um pouco mais estranho do que não ter o seu número, que você não pode mais atender ligações. Lembrei também que quando te perguntaram, num documentário a seu respeito, sobre o que ainda queria fazer, o que esperava em relação ao futuro, você disse com um calma absoluta “eu não quero nada, eu quero ficar vivo”.
Desde 1963, com a sua primeira peça, Somos todos do Jardim da Infância, que você montou na varanda desse mesmo apartamento e arrumou sérios problemas de convivência com o síndico e os condôminos, você tem dito a quem quer que seja que o teatro é uma combinação estranha, em que os atores fingem que é verdade, tentam fazer de verdade uma coisa que eles têm certeza que não é, que é mentira, e os espectadores também, sem ter combinado nada com eles, sentam nas cadeiras e ficam querendo crer que aquilo é verdade sabendo que é mentira, e que isso é uma coisa complexa e sofisticadíssima, que está aí há mais de dois mil e quinhentos anos e que não é possível, por exemplo, a um marciano entender isso, que é coisa de gente mesmo. (Gente bem doida, convenhamos.)
Foi nesse mesmo apartamento – desculpa a minha obsessão com apartamentos, já te explico – que o Paulo José seminu deu aquela cambalhota em Todas as Mulheres do Mundo depois de colocar jambalaya pra tocar na vitrola e dizer com o corpo inteiro que assim como você ele também tinha se apaixonado perdidamente pela Leila Diniz, e que essa cambalhota (tô aqui pensando em voz alta) era uma espécie de alegria do corpo, uma gargalhada que o corpo emite ao se apaixonar por outro corpo, que tem em si algo de muito primitivo, algo de muito antigo nisso – por não ter qualquer sentido em si mesma, a cambalhota é toda ela cheia de sentido, assim como a vida, que também é absurda em si mesma até que nós possamos dar algum sentido pra ela, e esse sentido, sempre provisório, pode vir, estranhamente, de uma cambalhota.
Você diz que o Truffaut te ensinou que era possível usar música clássica em cenas cotidianas. Essa ideia me parece bem bonita. Porque me faz pensar que de alguma maneira essa coisa grande que é a música clássica quando encontra essa coisa muita pequena que é a nossa vida doméstica, esse encontro gera um espanto de natureza épica, e a vida deixa de ser essa sem gracice e passa a ter algum um contorno, alguma medida que nos escapa enquanto vivemos.
Hoje é dia 17 de maio de 2020. Estou no meu apartamento. Antes vivíamos em apartamentos ou em casas, mas agora são os apartamentos e as casas que vivem em nós. Estamos tentando nos habituar a isso. Estamos tentando nos habituar a várias outras coisas, mas dessas outras coisas essa carta não dará conta. Então falo a partir desse apartamento que sou eu e que somos todos nós agora. Falo com você, Domingos, escrevo pra você porque talvez você tenha sido entre todos aquele que mais amou. E o amor, se não é a medida do mundo, é uma desculpa muito razoável para continuarmos no mundo. Coloco Bach pra tocar em sua homenagem. O meu apartamento sem Bach parece qualquer outro apartamento, mas Bach faz com que o meu apartamento ganhe musculatura. Ele agora é o Aquiles dos apartamentos. Um guerreiro indômito, algo que eu nunca fui. Mas agora sim, agora eu sou junto com ele. Ele se solta das suas estruturas de colunas e vigas maciças e se projeta no ar. Sai repentinamente aos tropeções, à procura de outros apartamentos que agora não estão mais presos a edifícios com estúpidos nomes em inglês, confinados entre um andar e outro, eles agora estão livres e sobrevoam a cidade e se comunicam entre si com muita facilidade, trocam receitas, falam sobre batatas cozidas, se o ajinomoto substitui o sal de cozinha, se o prato rei do PF é o picadinho, se o sorriso da Giulietta Masina em “Noites de Cabíria” era sorriso ou choro, e então alguém afirma que as praias são superiores às montanhas, e um outro insiste que Marx e Freud mudaram o mundo enquanto outro discorda dizendo que o mundo mudou quando Jack Lemmon em “Se meu apartamento falasse” usou uma raquete de tênis como escorredor de macarrão, e todas essas coisas que fazem e não fazem parte do mundo, que são e não são a realidade, agora são uma coisa só, assim como a vida e a morte parecem a extensão de um mesmo mistério de difícil resolução, que nem o Sudoku ou as palavras cruzadas do jornal de domingo se aventuraram a explicar, então isso de quem somos ou do que estamos fazendo aqui é uma questão menor, dado que a urgência em viver é o único sentido a que devemos nos agarrar. O meu apartamento, todo alvissasseiro, se agarra a outro apartamento, eu digo que “não, pera lá, vamos usar o álcool gel, larga ela!”, mas ele se recusa, ele se apaixonou no meio dessa pandemia, Domingos, isso lá tem cabimento! “Ei”, eu grito, mas ele vai, ele segue em frente, aos beijos. Os outros também seguem juntos, agarradíssimos. E eu vejo então o seu apartamento e o da Priscila, e vocês estão abraçados, um abraço que já dura mais de trinta anos. E então eu penso num trecho de uma carta que você escreveu pra ela em 91, ela em Paris, a passeio, você no Rio, no seu apartamento.
“Estou fumando e isso faz mal. Mas não te preocupa, meu céu, meu mar, minha flor, meu passarinho. Estou bem, para teu bem. O papel do fax acabou. E eu ainda tinha tanto para escrever!
Cuida da saúde, da saúde! Cuidado com o frio.”
Domingos
Lucas Mayor, maio de 2020
para Domingos Oliveira