“Este Mundo É Meu!”: a cultura, o pertencimento e a generosidade de Lizette Negreiros

Uma cerimônia que reuniu jardineiros do Centro Cultural São Paulo, uma trupe de acrobatas, projeções, dois mestres de cerimônia e uma mandala de terra na Sala Adoniran Barbosa. Na plateia, aplausos emocionados de alunos de escolas públicas, professores, autoridades e funcionários do CCSP se uniam a aplausos e agradecimentos de todos no palco, numa unidade de emoção em função da apresentação recém terminada. Estava iniciado o “Este Mundo É Meu!”, uma das programações mais ilustres já realizadas pela curadoria de Teatro Infantil e Jovem do CCSP.

Esta pesquisa objetiva compilar e divulgar informações sobre o “Este Mundo É Meu” e sobre a idealizadora deste projeto, mulher que é referência em Teatro Infantil e Jovem, amiga e curadora do CCSP, Lizette Negreiros (1940-2022). As informações apresentadas advém de materiais do Núcleo Memória do CCSP, além de entrevistas disponíveis nas mídias da instituição, notícias, textos autorais e depoimentos fornecidos por Lizette ao longo de sua vida. 

1. Da arte e da curadoria de Lizette Negreiros

Atriz e curadora nascida em Morro do São Bento (Santos-SP), em família simples, mas com grande afinidade artística, Lizette Negreiros é reconhecidamente símbolo de articulação cultural e produção intelectual do Teatro Infantil e Jovem de São Paulo. Seu trabalho como atriz e como curadora foi, cabe dizer desde já, reconhecido com muitos prêmios. Lizette foi agraciada por APCAs (Associação Paulista de Críticos de Arte), prêmio Moliére e Unicef, além de prêmios APETESP (Associação dos Produtores de Espetáculos Teatrais do Estado de São Paulo) e Governador do Estado de São Paulo.

Como atriz, começou sua carreira integrando os espetáculos notórios “Morte e Vida Severina” (1969), dirigido por Silnei Siqueira, e “Hamlet” (1969), dirigido por Flávio Rangel. Seu encontro com o Teatro Infantil acontece não por intenção, mas como grata surpresa: é na montagem de O Rapto (1970), adaptação de “O Rapto das Cebolinhas” de Maria Clara Machado dirigida por Paulo Lara, que Lizette descobre a importância, os encantos e o potencial transformador desta linguagem na construção não só de repertório cultural dos pequenos mas, a longo prazo, na formação continuada de uma sociedade mais tolerante. Depois deste primeiro contato, Lizette se envereda de vez pela linguagem que determinaria o rumo da sua carreira.

Quando ingressa de vez neste meio, em 1985, a atriz passou a encarar uma batalha constante: conquistar espaços dignos para a realização de teatro infantil num momento em que, segundo a própria curadora¹, a linguagem não era aceita e seus artistas eram menosprezados. Assim, além de estrelar espetáculos renomados, como “Antes de ir ao Baile” (1986, dirigido por Vladimir Capella) e “O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá” (1983, dirigido por Álvaro Guimarães), Lizette passou a lutar ativamente pela área cultural na qual tanto acreditava: articulou discussões sobre a renovação de dramaturgias, travou diálogos com autoridades para viabilizar fomentos e fundou a APTIJ, Associação Paulista de Teatro para a Infância e a Juventude, instituição que também presidiu. Conforme a própria curadora, no sétimo volume da edição da Coleção Cadernos de Pesquisa, os frutos de todos esses esforços começaram a ser colhidos na década seguinte:

“[Nos anos 80] O teatro infantil iniciou o seu fortalecimento enquanto atividade artística, passou a exigir respeito, reconhecimento e a adquirir direitos, bem como ter representantes nas comissões de teatro tanto do estado como do município (…). Outra grande conquista foi que nenhuma produção de teatro infantil deveria aceitar trabalhar no proscênio de nenhum teatro como até então lhe era destinado; teriam direitos nas divisões de camarim e iluminação igualmente com as outras produções que estivessem ocupando o mesmo espaço”.

Lizette prossegue com o panorama:

“Na questão das verbas, a conquista também foi importante porque o que se questionava na época era que uma produção para ser bem realizada tinha os mesmos gastos que qualquer produção de teatro adulto e que o preço do material era igual para ambos. Surgiu também uma nova dramaturgia, novos autores, nova maneira de pensar conceitualmente como fazer um bom trabalho de teatro infantil sem cair nas armadilhas convencionais.”

E foi o desenrolar desta trajetória de batalha e conquista por esta linguagem que a trouxe para o Centro Cultural São Paulo, em 1987, assumindo a frente do que viria a ser a Curadoria de Teatro Infantil e Jovem (cargo que na época era chamado de “Pesquisadora de assuntos culturais”, mas que determinava as mesmas atividades que hoje demanda uma curadoria). Na instituição, encontra solo fértil para expandir sua pesquisa e realizar programações que, alinhadas com sua bagagem profissional, promoviam tanto espetáculos quanto debates aprofundados sobre o contexto e os caminhos que já levavam o teatro infantil para além da boca de cena. Durante os mais de 30 anos em que esteve conosco, Lizette expandiu seus horizontes de pesquisa, o que se refletiu também na instituição. Inaugurou uma nova seção de curadoria, de Teatro Jovem, uma linguagem concomitante com o teatro infantil mas paralela a ela – de forma a contemplar as questões específicas para estas fases da vida; em adição a este pilar de seu trabalho, Lizette também deixou de usar o termo “Infanto-juvenil”, para frisar ainda mais a importância de discernir os temas e abordagens para as artes e seus públicos.

No cerne de sua curadoria estavam um olhar gentil para o mundo e uma entrega total ao potencial de formação que boas peças causavam em crianças e jovens. Além de entretenimento, os espetáculos por ela curados ofereciam uma experiência artística profunda e delicada, capaz de evocar no público reflexões subjetivas ou sobre o mundo ao seu redor. Segundo a curadora²: “isso é o importante: se veio aqui [aponta para o cérebro] e bateu aqui [aponta para o coração], pronto. Vai guardar pro resto da vida”.

Lizette fomentou discussões não só sobre a produção do Teatro Infantil e Jovem, mas sobre a história desta linguagem. Para ela, espetáculos ou eventos formativos deveriam ser, invariavelmente, catalogados como memória e disponibilizados para que o público geral pudesse acessar os registros do passado e aprender com eles. Em suas palavras³: “O que veio antes é muito importante. Não importa o que seja, pra gente ter parâmetros na vida e pra fazer as coisas, o que veio antes de nós é muito importante.”

Em mais de 30 anos de carreira e afinco no CCSP, Lizette se estabeleceu como elo articulador entre novo e velho, plateia e público, dramaturgia e memória. Seu trabalho cuidadoso e sensível não só marcou o Centro Cultural São Paulo, mas o enobreceu. Como instituição multilinguagem que promove o fomento às artes e a manutenção da memória, poder ter sido palco para suas realizações é uma honra imensurável. Lizette descansa, mas sua memória e seu legado seguem nos motivando a manter o olhar atento e sensível para as transformações que a cultura pode fazer no mundo.

2. “Este Mundo É Meu!”: onde tudo é palco e tudo é lugar

“Então você vê: o Centro Cultural São Paulo acaba sendo a minha casa, minha casa do experimento!”
Lizette Negreiros, em entrevista institucional para o Quem Fez, Quem Faz (2019)

O “Este Mundo É Meu!” foi um projeto vasto, lúdico e acolhedor idealizado por Lizette Negreiros com o propósito de promover a inclusão e a diversidade para crianças dentro e fora do Centro Cultural São Paulo. Numa dinâmica que em muito se assemelhava a um festival, a programação ocupava, durante uma semana do mês de outubro, inúmeros espaços do CCSP com apresentações e oficinas gratuitas em diversas linguagens (teatro, música, dança, performance, cinema, etc) para o público infantil e jovem. Nos palcos, aconteciam apresentações organizadas por ONGs e instituições que realizavam trabalhos artísticos com a juventude, ao lado de artistas já consolidados. Na plateia, crianças do público orgânico e estudantes de escolas públicas de toda a São Paulo. Uma experiência de convivência e cidadania na qual, a partir do encontro, se transgredia a barreira entre plateia e público em prol da formação cultural.

O “Este Mundo É Meu!” surge como resposta institucional a um momento do ano de 2001 em que se amontoavam notícias de abandono de crianças, além da eclosão de rebeliões na FEBEM (a Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor, atualmente chamada de Fundação CASA). Profundamente tocada pelo contexto, Lizette é levada a programar uma série de eventos que tornassem o CCSP uma ferramenta cultural de transformação daquele cenário.

Então, a partir da possibilidade de trazer para a instituição escolas públicas de toda a São Paulo, Lizette elabora uma programação afirmativa já no nome, que deslocaria para o CCSP não somente alunos de escolas públicas, mas crianças e jovens que já estivessem envolvidos com trabalhos artísticos de ONGs ou instituições afins e que pudessem apresentá-los por aqui, encontrando, nos palcos do Centro Cultural São Paulo, uma experiência de exposição e apropriação da própria arte e da própria existência.

Foram diversos espetáculos de excelência, transformadores para os jovens artistas, para o público infantil e para os adultos envolvidos – professores, funcionários, autoridades políticas, etc – como comprovam os relatórios avaliativos das apresentações, disponíveis no Núcleo Memória. Dentre as passagens memoráveis, merecem destaque o espetáculo “Num lugar de La Mancha – amores e aventuras de Dom Quixote”, apresentado pelo Grupo FEBEM/ARTE em 2002; a oficina de contação de histórias do Povo Guarani, com o grupo Xondaro Miriam da Aldeia Morro da Saudade, em 2002; a participação do Balé de Cegos Fernanda Bianchini, em 2008; e o Projeto Guri, com regência do maestro Walter Azevedo, também em 2008.

Em entrevista institucional cedida em 2019, Lizette conta que a ideia do “Este Mundo É Meu” era aproximar realidades sob uma ótica de integração, não de curiosidade ou dessemelhança. O objetivo era que, fosse pela idade, fosse pela emoção, pela linguagem ou experiência, os grupos que se apresentavam e/ou os que assistiam pudessem se identificar com o outro e, durante a estadia no Centro Cultural São Paulo, se apropriassem desta troca respeitosa, expandindo seus horizontes culturais e de conhecimento de mundo, numa experiência que pudessem levar para suas vidas, em todas a suas diferenças. Na galeria abaixo, você confere alguns destes encontros:

O “Este Mundo É Meu!” aconteceu por oito anos consecutivos, de 2001 a 2008. Ao longo do tempo, o projeto cresceu e passou a se debruçar sobre temas específicos, como sustentabilidade, os 5 sentidos e as distâncias entre guerra e paz. Mais que um trabalho de letramento cultural em larguíssima escala, foi um projeto de construção de cidadania baseado na comunhão que só a experiência cultural é capaz de promover. Ao reunir num mesmo local diversas infâncias, juventudes e culturas, o “Este Mundo É Meu!” se tornou uma experiência de afirmação e cidadania, uma ode à arte infantil e juvenil como formação de tolerância e visão de mundo.

Tamanha programação e completude refletem, mais uma vez, a capacidade de Lizette de manufaturar toda a sua bagagem num projeto criativo extremamente generoso e benéfico para toda a cidade. Reflexo de uma longa caminhada de pesquisa, produção de conhecimento e pavimentação do teatro infantil e jovem num momento em que pouco se fazia para esta área, o “Este Mundo é Meu!” é sobretudo um ateste da diferença que esta mulher, atriz e pesquisadora fez pela cultura da cidade e do país. Que falta você faz, Lizette!

 


Em outubro de 2023, a curadoria de Teatro dá continuidade ao legado da nossa eterna curadora com a Mostra Lizette Negreiros de Arte Infantil e Jovem, que por um mês ocupará diversos espaços do CCSP com uma programação gratuita e diversa, de qualidade e excelência, para toda a população da cidade de São Paulo.

 

Pesquisa e redação: Isabela Pretti Nogueira
Revisão: Tessi Ferreira
Colaboração: Núcleo Memória do CCSP

¹  Em entrevista à editoria institucional “Da Arte e do Ofício”, realizada em 2017 e disponível no canal de YouTube do CCSP.

² Em entrevista institucional realizada em 2007, sobre o próprio “Este Mundo É Meu”. Disponível para consulta no Núcleo Memória.

³ Em entrevista institucional realizada em 2018 sobre a programação “70 anos da história do teatro infantojuvenil no Brasil”, construída em conjunto com Cibele Troyano. Disponível para consulta no YouTube do CCSP.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ENTREVISTAS RETIRADAS DO YOUTUBE

CENTRO CULTURAL SÃO PAULO. [70 anos do teatro infantojuvenil] Depoimento com Lizette Negreiros e Cibele Troyano. YouTube, 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dnEy3RHGy_4&t=482s

CENTRO CULTURAL SÃO PAULO. 20170528 ANTROPOFAGIA. YouTube, 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bENQP67YseI&t=232s

CENTRO CULTURAL SÃO PAULO. Da Arte e do Ofício – Lizette Negreiros. YouTube, 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fiZXtYRTsSc&t=23s

LILIANA GONÇALVES (UPTV). UPTV Programa Cultura.Com- Lizette Negreiros. YouTube, 2014. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2Er9cI7Ig98

TEXTOS AUTORAIS DE LIZETTE

ARTE, MÚLTIPLAS ARTES, 2022. Editorial da curadoria. São Paulo: [s. n.], 14 dez. 2022. Disponível em: https://centrocultural.sp.gov.br/elementor-20173/. Acesso em: 5 out. 2023.

MEMÓRIA! MEMÓRIAS! MEMORIAL! CCSP 40 ANOS!, 2022. Editorial “O Memorial do Centro Cultural São Paulo: 40 anos em uma caricatura”. [s. n.], 14 dez. 2022. Disponível em: https://centrocultural.sp.gov.br/memoria-memorias-memorial-ccsp-40-anos/. Acesso em: 5 out. 2023.

MATERIAIS DISPONÍVEIS NO NÚCLEO MEMÓRIA

Registros e entrevistas das edições do “Este Mundo É Meu!” de 2006, 2007 e 2008. Disponível para consulta em acervo.

Relatórios das edições do “Este Mundo É Meu!”. Disponível para consulta em acervo.

NEGREIROS, Lizette. O Projeto. Este Mundo É Meu!: 6 a 18 de outubro de 2007, São Paulo, p. 3 – 4, 2007.

PORTAIS ESPECIALIZADOS E NOTÍCIAS DE JORNAL

CBTIJ. Depoimento: LIZETTE NEGREIROS. In: CBTIJ – Centro Brasileiro de Teatro para a Infância e Juventude: LIZETTE NEGREIROS. São Paulo, 2004. Disponível em: https://cbtij.org.br/lizette-negreiros/. Acesso em: 5 out. 2023.

PESCARINI, Fábio. Mortes: Referência nos palcos, atriz deixou legado no teatro paulistano: Lizette Negreiros também fez história no cinema e na TV e foi curadora na dramaturgia infantil. Folha de S. Paulo, São Paulo, 22 nov. 2022. Obituário, p. 1. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/11/mortes-referencia-nos-palcos-atriz-deixou-legado-no-teatro-paulistano.shtml. Acesso em: 5 out. 2023.

ROSSI, Mariane. Santista Lizette Negreiros ganha prêmio por lutar pelo teatro infantil: Atriz saiu de Santos, na década de 60, e fez carreira nacional. Há 30, é curadora do Centro Cultural São Paulo e luta pelas minorias no teatro.. G1, São Paulo, 29 mar. 2018. Santos e região, p. 1. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/santos-regiao/cultura-diversao/noticia/santista-lizette-negreiros-ganha-premio-por-lutar-pelo-teatro-infanto-juvenil.ghtml. Acesso em: 5 out. 2023.

LINKS DO SITE DO CCSP

ADEUS, Lizette Negreiros. São Paulo, [S. l.], p. 17 nov. 2022. Disponível em: https://centrocultural.sp.gov.br/adeus-lizette-negreiros/. Acesso em: 5 out. 2023.

DUTRA, Márcia; GUIMARÃES, João Vitor; TANNUS, Lara. Quem fez, quem faz: Lizette Negreiros. 2 mar. 2020. Disponível em: https://centrocultural.sp.gov.br/quem-fez-quem-faz-lizette-negreiros/. Acesso em: 5 out. 2023.

NEGREIROS, Lizette. TEATRO INFANTIL – DÉCADA DE 80. Coleção Cadernos de Pesquisa: Um Pouquinho do Teatro Infantil, São Paulo, v. 7, p. 11 – 13, 2007. Disponível em: https://centrocultural.sp.gov.br/wp-content/uploads/2023/09/um-pouquinho-de-teatro-infantil-Centro-Cultural-Sao-Paulo.pdf. Acesso em: 5 out. 2023.

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