Minha vida sem mim: a construção do desejo de viver

Durante o mês de agosto, o CCSPlay, canal de streaming do CCSP, exibe a mostra “Minha vida sem mim”. A curadoria de cinema selecionou quatro filmes que retratam personagens em situações-limite e as maneiras exploradas por eles para lidar com tais dificuldades. Em “Minha vida sem mim” (2003), obra que nomeia a mostra, nos é apresentada a vida na perspectiva de uma mulher que está morrendo. 

O monólogo de Ann (Sarah Polley) inicia a trama. A cena apresenta a sensibilidade que apenas a iminência da morte pode ceder a alguém; dona de uma vida monótona, ela descobre repentinamente a existência de um tumor que a deixou com três meses para viver. 

Dirigido pela espanhola Isabel Coixet, o longa-metragem se afasta das lições de moral ao não fazer uso do típico personagem que está morrendo e passa a perseguir o melhor da vida no curto tempo que resta. Neste filme há uma jovem de 23 anos tão exaurida pela pobreza e sedada pela inércia da sua realidade cinza que não consegue ver, abruptamente, o mundo ganhar cor. 

Ainda na primeira das poucas visitas ao hospital, Ann faz um pacto consigo mesma: morrerá em silêncio. Para evitar que as últimas memórias atreladas a ela sejam de idas e vindas hospitalares, Ann decide viver seus últimos dias sem que as pessoas do seu entorno saibam o que acontece. Enquanto há quem classifique a decisão como egoísta, a protagonista reflete a consequência de sua escolha: “você está sozinha. Nunca esteve tão sozinha em toda a sua vida. As mentiras são sua única companhia”. A escolha de dissimular marca o filme com os diálogos internos da personagem, o que se torna o único modo de sabermos os sentimentos reais dela. 

Já nos primeiros minutos de filme, o espectador encontra Ann em um contexto tortuoso; na adolescência, a protagonista engravidou duas vezes do primeiro e único parceiro; com o salário de faxineira em uma universidade, ela é responsável por sustentar sua família, constituída pelo marido Don (Scott Speedman) e as duas filhas do casal. Juntos, vivem no trailer estacionado no quintal da matriarca enquanto o pai está preso. 

Mas ainda que experiencie uma vida monocromática, ela não prepara planos de glória ao receber o diagnóstico terminal; a prioridade está em estruturar o futuro para suas filhas. É uma mulher e uma mãe quem está morrendo, e este é um importante ponto que o filme carrega. Na película, a figura feminina e suas inseguranças são retratadas lado a lado: alguns dos temas abordados são a obsessão por procedimentos estéticos que envolve a garçonete Dorothy e os distúrbios alimentares desenvolvidos por Laurie, amiga mais próxima de Ann, após ser abandonada pelo noivo. Para a protagonista, as pequenas vaidades femininas ganham espaço após a descoberta do tumor. Depois de anos que exigiram dela a permanência no segundo plano da sua própria vida, Ann decide voltar-se para si mesma. 

Com desejos em mente, a jovem enumera atividades em uma lista de coisas para fazer antes de morrer: no topo das tarefas, está a gravação de fitas para as filhas e a preocupação em conseguir uma nova esposa para o marido ou melhor, ela procura uma mulher capacitada para cuidar e amar as crianças. Já algumas das suas vontades pessoais incluem dizer o que pensa; mudar o cabelo; experienciar outros homens e fazer alguém se apaixonar. 

Dentre elas, uma é executada com glória. No café local, Ann conhece o recém divorciado Lee (Mark Ruffalo), quase tão carente quanto ela. Enquanto os olhos dela são rápidos sobre ele, os dele a observam com curiosidade e cuidado. Entre eles, rápidas interações tornam mútuo o desejo. 

Juntos, os dois protagonizam cenas curtas, porém intensas, e não carregam grande aprofundamento; de repente, ambos estão apaixonados e Lee está consciente de seu papel na vida de Ann. A boa atuação de Polley e Ruffalo transformou a decisão em acerto e trouxe fluidez à história. 

Embora haja amores na vida de Ann, não é possível confundir a obra com um romance. Lee está presente para ajudá-la a estar no lugar que ela julga precisar alcançar. Esta relação é uma síntese de como os últimos meses da jovem giram em torno de ser. 

Por fim, “Minha vida sem mim” não se caracteriza como um filme sobre a morte. Ann se vai observando a vida que preparou aos desavisados que ficam; e ao mesmo tempo em que semeou e cuidou das suas relações, colheu as pequenas vivências que julgou significativas o bastante para ter como últimas lembranças. 

Ao descobrir que morreria, Ann teve o sentimento de, finalmente, despertar: “agora você tem vontade de tomar todas as drogas do mundo, mas elas não vão mudar a sensação de que sua vida toda foi um sonho e só agora você está acordando”. A produção de Coixet é um chamado doloroso para que a vida seja vivida com totalidade seus prazeres e dores, suas faltas e presenças. É, também, um toque no ombro para que o peso e as injustiças que ela nos traz não sejam maiores que os nossos sonhos. 

Para conhecer esta e outras histórias, assista a mostra “Minha vida sem mim”, disponível no  CCSPlay até 31 de agosto!


Texto: Paloma Santiago

Revisão: Isabela Pretti 

Ilustração: Kelly Sumadossi 

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