E se a cópia for realmente melhor que o original?

Até o dia 15 de maio estará acontecendo no Centro Cultural São Paulo a exposição “Da Bienal ao Centro Cultural São Paulo: 40 anos de Arte Postal”. Nela, o público tem acesso a um amplo acervo com obras diversas e plurais, vindas de diferentes lugares do mundo. Cerca de 437 artistas de 30 países diferentes participaram da XVI Bienal de São Paulo com suas obras, que atualmente estão sob a salvaguarda do CCSP. Neste artigo, trataremos sobre o conceito de Arte Postal, um breve panorama histórico do movimento e suas principais influências e impactos até hoje. 

A Arte Postal é uma manifestação artística marginal surgida em meados dos anos 1960, nos Estados Unidos, que se difundiu grandemente por volta de 1970 e que teve seu auge na década de 80, época em que aconteceu a XVI Bienal. Consiste em um movimento onde artistas (chamados de mailartistas) enviam suas artes via correio uns para os outros, criando uma ampla rede de correspondência que, muitas vezes, percorria o mundo. As redes eram criadas através de mailing (lista de contatos) e constituíam sempre um novo circuito. E essa é realmente uma definição simplista, já que a arte postal é não só um movimento artístico, mas também político e social, que abarca inúmeras dimensões culturais. 

Os artistas pioneiros do movimento pretendiam colocar suas obras em circulação, sem estarem “reféns” do mercado da arte, de suas regras e paradigmas definidos. Era um boicote à lógica mercadológica e um fôlego de resistência. Na época, tecnologias como o xérox e o mimeógrafo¹ estavam surgindo e eram proibidas em alguns locais (como o Brasil). Apesar disso, muitos artistas aproveitaram as ferramentas para fazer uma série de experimentações criativas e conceituais, e também para replicar suas obras com a intenção de distribuí-las e de romper com a ideia de que deveria haver apenas um original de uma obra, que seria cooptado e explorado no mercado das artes. 

Dentro da Arte Postal há ainda uma enorme diversidade no que diz respeito às linguagens e tipologias utilizadas pelos artistas. Fotografia, desenho, pintura, texto, gravura, colagem e xérox, são alguns exemplos das múltiplas técnicas que compõem o movimento. As temáticas também são diversificadas. Há espaço e liberdade para falar sobre as mais diversas pautas. Inclusive, os artistas envolvidos no movimento entre as décadas de 70 e 80 trataram em suas obras temas como a repressão da ditadura militar, questões ambientais, armamentistas, políticas, de gênero, sexualidade e raça – muitas delas infelizmente ainda se fazem urgentes em nosso tempo. 

Dessa forma, a Arte Postal cumpre um papel artístico, abrindo espaço e dando voz para artistas criarem e experimentarem técnicas e formatos em suas obras. Por outro lado, existe uma dimensão social que permeia o movimento o tempo inteiro, quando esses artistas propõem a circulação livre e independente de suas obras, atravessando fronteiras e acumulando memórias e histórias de um tempo e de vários espaços. Economicamente, a Arte Postal desafia o sistema capitalista e os padrões comerciais dentro do mercado da arte, já que em sua essência, o movimento não estabelece vínculos comerciais e monetários. Do ponto de vista político, o discurso empregado nas obras e na própria dinâmica da Arte Postal, refletem o descontentamento e a resistência de muitos fazedores de arte diante de sistemas políticos falidos, conservadores, opressores e autoritários. 

Vale ainda ressaltar o caráter híbrido que a Arte Postal possui. A linha tênue entre arte e documento. As obras artísticas estão impregnadas de conceitos estéticos e linguagens empregadas pelos artistas. Concomitantemente, apresentam cunho documental, especialmente quando leva-se em consideração o contexto em que o movimento esteve inserido em seu auge, na década de 80. A partir de algumas artes, é possível identificar em qual contexto social, político e histórico tal obra foi produzida, como se representassem um fragmento do que acontecia no mundo naquela época.

A lógica do movimento subverte a ideia de consumo e de comunicação. No fundo, estamos falando sobre comunicação, e também sobre consumir produtos artísticos de pessoas que estavam pensando o seu tempo. Entretanto, o consumo ganha uma roupagem diferente. Talvez, nesse caso, consumir esteja atrelado ao ato de receber e de contemplar. E para que a roda continue girando, o verbo enviar também é fundamental. No caminho entre receber e enviar, estabelece-se a comunicação, a troca e a difusão almejadas. Assim, podemos pensar a Arte Postal como um movimento artístico que também desafia a noção de separação rígida entre público e artista, de que artistas criam apenas individualmente e de maneira solitária. Nesse caso, as redes não seriam possíveis se não acontecessem em coletivo, em constante intervenção mútua. 

Não pensem que os artistas não estavam conscientes do percurso que propunham em suas experimentações e correspondências. Muitos deles faziam intervenções nos pacotes e envelopes que eram enviados, colocando frases, imagens, propondo ações para quem viesse a ter contato com o objeto. Ou seja, o caminho também compõe a obra, o percurso é tão importante e fundamental quanto remetentes e destinatários. Assim, a Arte Postal estabelece contato com o artista, com os funcionários das agências de correio, com o carteiro, com um familiar que porventura venha a receber a correspondência antes do destinatário. Um amplo horizonte se desenha e permite que trocas e experiências se cruzem no tempo, no território e por diversas gerações. 

Apesar da grande liberdade que envolve o movimento, há uma dimensão ética que deve ser respeitada pelos artistas que participam das mostras de Arte Postal. Algumas “regras” são colocadas: toda obra enviada deve ser aceita, não devem ser comercializadas, censuradas ou devolvidas. Geralmente, as mostras são organizadas através de convocatórias, como aconteceu na XVI Bienal em 1981. As chamadas abertas ao público apresentam a temática (quando há) da mostra, o endereço para onde devem ser enviadas, prazos e outras condições de participação. 

Infelizmente, durante muito tempo a Arte Postal esteve fora do radar do circuito de artes oficial, ou seja, dos curadores, museus, instituições artísticas, galerias e exposições. O caráter subversivo do movimento corroborou para sua difícil aceitação e reconhecimento, já que a maior parte das obras eram consideradas impróprias. Foi preciso um longo caminho até que fosse aceita e reconhecida como uma manifestação artística legítima – e talvez um dos motivos para isso  seja justamente a sua proposta anti-capitalista, anti-sistêmica e anti-burguesa. Uma das saídas encontradas na época foram as exposições independentes. Vale a pena destacar duas delas que aconteceram no Brasil, em Pernambuco, em 1975 e em 1976: a Primeira Exposição Internacional de Arte Postal e a Exposição Internacional de Arte Postal. 

No Brasil, a Arte Postal se destacou especialmente no período da ditadura militar (1964-1985), momento crítico que submeteu muitos artistas à censura e perseguição. Dessa maneira, os mailartistas encontraram um meio de continuarem a produzir suas obras e de praticarem, em algum nível, a sua liberdade. Uma das estratégias utilizadas pelos artistas era o conceitualismo e o amplo uso de metáforas, que ajudaram a confundir a censura. Era preciso ousadia, inteligência, criatividade e coragem para desafiar e nadar na contramão do sistema. 

Muitos materiais preciosos de Arte Postal certamente foram perdidos ao longo dos anos, porém, a institucionalização, em algum nível, garantiu a preservação de muitas obras e o reconhecimento de diversos artistas. Atualmente, as redes de Arte Postal ainda estão em vigor, ainda que em menor fluxo, e inúmeros artistas seguem imprimindo em suas obras discursos, narrativas e olhares que refletem a enorme diversidade que compõe nossa sociedade. Nos ajudam a pensar o mundo, suas nuances, dinâmicas e contradições. Sabemos que a arte em seu conceito e em suas dimensões é extremamente ampla e passível de infinitas discussões. É aí que reside a dialética fundamental. Entretanto, a Arte Postal nos provoca a colocar em questão, à artistas e não artistas: para quem? por que? como? de onde? para onde? 

A exposição de Arte Postal segue aberta para visitação no Centro Cultural São Paulo até o dia 15 de maio. O acesso é gratuito, livre para todos os públicos e não é necessário a retirada de ingressos. A visitação pode acontecer de terça a sexta, das 10h às 20h e sábado, domingo e feriados, das 10h às 18h, no Piso Flávio de Carvalho. 

Agradeço especialmente a Camila Bôrtolo, coordenadora da Coleção de Arte da Cidade, pela generosidade e pelo amplo conhecimento fornecido. 



Notas

[¹] Trata-se de um instrumento utilizado para fazer impressões e cópias em grandes quantidades, manualmente, a partir de uma matriz. Para o seu funcionamento eram utilizados os seguintes materiais: papel, álcool, estêncil e mesa de apoio. 

+Para saber mais: 

ROMANO, Camila Bôrtolo. A coleção de arte postal da XVI Bienal de São Paulo: temáticas, tipologias e técnicas. DATJournal, v.6, n.3, p. 161-187, 2021. Disponível em: https://datjournal.anhembi.br/dat/article/view/445/325 

ROMANO, Camila Bôrtolo. Do marginal ao museal: um estudo sobre a Arte Postal da XVI Bienal de São Paulo. Dissertação (Mestrado em Museologia) – Programa de Pós-Graduação Interunidades em Museologia, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2020. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/103/103131/tde-25082021-100906/pt-br.php


Texto: Tessi Ferreira

Revisão: Isabela Pretti 

Ilustração: Kelly Sumadossi 

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