A ideia da série Diálogos entre acervos é criar pontos de contato entre os livros do acervo da Biblioteca (especialmente o da Alfredo Volpi) e as obras das coleções mantidas pelo CCSP. Em dezembro, destacamos itens de nosso acervo que não se evidenciam de imediato no conjunto da Coleção de Arte da Cidade: as esculturas. Além de comentar os trabalhos selecionados, apresentaremos algumas considerações teóricas sobre a técnica, com especial atenção para o que se convenciona chamar de escultura hoje nas artes visuais.
Alguns aspectos sobre a evolução da técnica da escultura
No geral, nota-se uma obsessão do ser humano, visível em todas as artes, mas intensificada em esculturas, por representar a si mesmo, com ênfase em diferentes características ao longo do tempo – o tamanho real, a proporção entre um membro e outro e o refinamento dos traços faciais e musculares. Se os vestígios que temos da pré-história centram-se em obras pequenas e mais distantes da representação real como a Vênus de Willendorf (abaixo), de 11 cm, no período seguinte, no Egito Antigo, a escultura se centra na representação de aspectos grandiosos, não apenas do ser humano.
Na Grécia Antiga, a maior parte das esculturas inclui corpos nus em movimento, feitas em mármore branco e, posteriormente, em marfim, ouro e pedras nobres. A mudança na concepção de arte, ultrapassando o utilitarismo e se aproximando de certa autonomia cultural e social, deixou um legado que influenciou toda a arte criada a partir de então, bem como os paradigmas ocidentais de padrões de beleza para corpos femininos e masculinos. Hoje, sabe-se ainda que a superfície das obras costumava receber pinturas em detalhes como os cabelos e olhos, que desapareceram com o tempo, e revela a preocupação em mimetizar o real para além dos detalhes do relevo.
No século 10, técnicas voltadas para a elaboração de esculturas atingem seu auge, colaborando para uma frieza e uma objetividade do estilo gótico ao mesmo tempo em que conduzem as artes a uma ampliação das noções de horizontalidade e alongamento. Se nas correntes filosóficas e culturais da época as ideias predominantes se voltavam para uma racionalidade em detrimento da emoção, o mesmo se expressava nas artes da Idade Média, em que a verticalidade e a letargia das obras eram priorizadas. Fora da Europa, povos como incas, maias e astecas também se dedicam à escultura, utilizando cerâmica e pedras e representando entidades antropomórficas e mitológicas de suas próprias civilizações.
Mais adiante, já durante o Renascimento italiano propriamente dito, as esculturas procuravam representar, assim como na Grécia Antiga, a figura humana com o máximo de traços reais e naturais, baseando-se, porém, em pensamentos humanistas e estudos da anatomia (ainda não desenvolvidos pelos gregos). Entre os séculos 14 e 16, o corpo humano representava o ideal de beleza absoluta – isto é, aquilo que se deseja ver, em uma manipulação pelo ideal daquilo que é visto – e as noções de perspectiva e de proporção em relação ao real eram difundidas entre os intelectuais e estudiosos europeus. Dentre os materiais mais utilizados estavam o bronze, o mármore e a madeira, enquanto ferramentas como a broca manual (imagem), para eliminar a pedra até determinada profundidade, também eram importantes na constituição das obras.
Entre o final do século 16 e o início do 17, correntes como o maneirismo e o rococó se desenvolveram principalmente na Europa. Enquanto o primeiro busca distorcer e questionar o convencional, usando linhas deformantes e forçando um desequilíbrio que até então pautava o desenvolvimento das artes – sempre atrelado à religião –, o segundo é marcado por técnicas mais complexas embora com uma proposta mais decorativa e frívola.
Neste contexto, a escultura era mais facilmente encontrada quando disposta na arquitetura – em templos, capelas ou palácios –, dificultando a dissociação entre as duas artes e criando tendências como linhas curvas e contracurvas mais delicadas e fluidas, bem como gestos de humanos mais elegantes e cortesões. Os principais materiais da época eram aqueles que menos tinham sido usados até então, como argila, madeira e principalmente porcelana.
No Iluminismo, os escultores demonstram uma busca pelo equilíbrio formal em estátuas que enfatizam o retrato do nu e uma delicadeza nos movimentos das personagens, prezando pelo naturalismo e por elementos alegóricos em suas obras. Assim como nas estátuas da Antiguidade Clássica – várias delas descobertas por pesquisas arqueológicas deste período –, os materiais empregados costumavam ser o bronze e o mármore branco, sem camadas de tintas desta vez, mas com a mesma idealização de heróis e homens grandiosos representados em obras realizadas principalmente em Roma e Copenhagen ao longo de todo o século 18.
As transformações da escultura ao longo da modernidade
Já Paris, em meados do século 19, atravessava um período de intensas transformações urbanas compreendidas como efeitos da Revolução Industrial – que alterou a dinâmica e o espaço da capital francesa, como as reformas de modernização da arquitetura empreendidas pelo Barão de Haussmann. Em Paris, considerada um dos polos da arte ocidental, residiam diversos artistas em plena época de renovação da produção que acompanhava os novos tempos – especialmente a pintura. O movimento impressionista, inserido nesse contexto de transformações, surgiu da necessidade de superação da arte acadêmica, assim constituindo um momento inaugural da arte moderna.
A escultura não acompanhou, naquele momento, essa atualização do pensamento plástico – que eclodia com tamanha intensidade na pintura. O fazer escultórico, em toda a Europa, demonstrava um estado conservador que era pautado no academismo notório nos processos de modelagem. “Podemos dizer que lhe faltava integração no tempo e na inquietude da sensibilidade da época”, diz Walter Zanini acerca da situação da escultura, que perdurava desde tempos remotos, como no Renascimento. Na contramão, a pintura se revelou, ao longo dos séculos, como objeto de estudo para compreender a contemporaneidade histórica. Mas, ainda no século 19, é notável o surgimento de uma nova força que orientava a escultura, na mão de alguns artistas, para uma renovação especificamente realista, como na primeira fase de Rodin. Em outro pintor-escultor, Degas, a escultura da época encontra nova possibilidade de revitalização a partir da invenção, pelo artista, da “figura-arabesco”, em cuja morfologia incidem as aspirações impressionistas e a sensibilidade art nouveau.
A efervescência artística que marcou a transição entre os séculos 19-20 é causa da constante evolução que a escultura assumiu desde então, aderindo às novas aspirações estéticas e aos procedimentos técnicos que emergiam em busca da superação do passado. Matisse, em diversas peças, cultivou uma concepção iconográfica feminina e livre de muitos detalhes, cujos acenos expressionistas são por vezes intensos. Essa transitoriedade escultórica entre a tendência classicista e a modernidade, que achou ambiente fecundo para a experimentação, é um marco constante que prosseguirá pelos séculos 20 e 21. Cada vez mais diversos artistas aderiram para a técnica da escultura novos materiais, estilos e motivos.
Com o advento das vanguardas europeias, se buscou diferentes maneiras de dar forma, através da escultura, aos conteúdos sentimentais da existência humana. O aparecimento do Fauvismo na França e do Expressionismo na Alemanha constituiu as primeiras manifestações em grupo de vanguarda de arte do século 20. Ambos os movimentos procuraram uma comunicação direta com a realidade comum a fim de transmitir uma nova emoção diante da existência. Através do Cubismo, posteriormente, nascem as primeiras experiências entre a pintura e a escultura destinadas a trazer uma contribuição decisiva ao desenvolvimento de expressões posteriores, como o Dadaísmo, a Pop Art, etc.
Os caminhos da escultura moderna até a contemporaneidade no Brasil
As influências das correntes europeias se impregnavam na novíssima produção brasileira do início do século 20:
“De olho no que se lança no exterior, especialmente na França, os escultures do Brasil mais jovens e animados em participar das novidades se apresentam cheios de fantasia, naquela fase em que a escultura deixa a temática figurativa para se envolver no abstrato.” (trecho retirado do livro Em torno da escultura no Brasil, de P. M. Bardi, que está disponível na Coleção de Artes Alfredo Volpi do CCSP).
Mas se pode mencionar que o contexto da época, especialmente em São Paulo – considerada, então, o polo das artes plásticas do País – era de uma sociedade conservadora e tradicionalista. A ideia de escultura ainda era pautada pelos teores classicistas da representação figurativa, então havia uma resistência na receptividade de novos ares estéticos. Os artistas brasileiros podiam ser associados a uma das tendências vanguardistas ocidentais que eclodiram ao longo das décadas do século 20 – o impressionismo, cubismo, dadaísmo, surrealismo, construtivismo, abstracionismo, entre diversos outros – ou indicados como seguidores ou simpatizantes de alguns novos mestres.
Até a produção escultórica atual ter conquistado um importante espaço no meio das artes visuais, pela sua multiplicidade e independência da tradição, foram múltiplos os percursos da produção escultórica brasileira – interessada pela renovação – no século passado. Por percursos se entende a busca dos artistas em expandir o tradicional suporte da escultura: a pedra, tendo o mármore como expoente. Assim, novos materiais começaram a ser explorados e utilizados, até mesmo juntos, em busca de uma tridimensionalidade que atendesse ao desejo da renovação estética: o metal, o papel, a borracha, o tecido, a madeira. No Brasil, deve-se ainda assinalar o parentesco entre escultura e arquitetura. Uma tendência a ser notada na arquitetura contemporânea é o pensar nas formas escultóricas, isto é, quando se consegue oferecer maior destaque às soluções de edificação.
A escultura na Coleção de Arte da Cidade
A Coleção de Arte da Cidade, acervo mantido pelo CCSP, tem uma quantidade expressiva de esculturas sob sua guarda. São trabalhos de diversos períodos do século 20, ou seja, que revelam uma diversidade de técnicas, materiais, estilos e expressões. Aqui fizemos uma seleção de obras produzidas a partir da década de 1990 que mostram os percursos possíveis que a escultura assumiu nos últimos anos e questionam os valores tradicionais ainda relacionados, no imaginário do público, ao conceito de escultura. Amelia Toledo tem no acervo Fatia de horizonte, de 1992. A obra se integra à arquitetura e ao espaço da cidade – revelando, assim, uma característica presente na trajetória da artista. O trabalho, por esse caráter conectivo com o entorno, nos faz pensar em caminhos para o que se convencionou chamar atualmente de instalação.
Claudio Cretti começou sua trajetória fazendo formas em papel rasgado nas bordas, um procedimento que o levou à elaboração de esculturas em madeira e outros materiais. Sem título, de 2000, trabalho em granito que pertence ao acervo do CCSP, revela um movimento de construção das imagens a partir de deslocamentos de planos que conduzem o olhar para formas mais expandidas.
Paulo Monteiro reúne uma expressiva produção escultórica de formas orgânicas, nas quais explora as rugosidades da superfície. Embora feitas de metais, suas esculturas têm um aspecto flexível, como Sem título, de 2000, realizada em chumbo, que representa essas considerações acerca do modo como o artista exerce seu pensamento plástico a partir da escultura, fazendo com que, através dessa técnica, suas obras se aproximem de elementos da natureza.
Referências
Grécia Antiga
Rococó
Iluminismo
Texto: Danilo Satou e João Vitor Guimarães
Colaboração: Coleção de Arte da Cidade
Ilustração da capa: Beatriz Simões (a partir da obra da artista Amelia Toledo)
*Publicado em 18 de dezembro de 2018