Da contracultura à contemporaneidade: a literatura marginal brasileira nos anos 1970 e no século XXI

Atribuir a uma obra – ou a um conjunto delas – a conotação de “marginal” pode apontar para alguns caminhos distintos, desde a associação dos autores assim denominados ao mito do “escritor maldito”, que geralmente tem sua obra deixada de lado pela maior parte do público e da crítica, até uma literatura feita por indivíduos que integram grupos socialmente tidos como minorias. Entre as duas acepções, porém, encontra-se a associação do termo à “geração mimeógrafo”, composta de poetas que se encontram à margem da produção editorial e da esfera acadêmica nos anos 1970. Autores como Ana Cristina Cesar (1952-1983), Paulo Leminski (1944-1989) e Antônio Carlos de Brito [Cacaso (1944-1987)], com várias de suas obras presentes no acervo da Biblioteca Sérgio Milliet no CCSP, desviaram do padrão da época e traçaram uma trajetória na poesia que conscientemente fazia questão de se opor ao cânone literário e artístico brasileiro, e disseminar a literatura independentemente do sistema editorial da época.

Das temáticas provocativas abordadas em gêneros de difícil assimilação por parte do público leitor – se a poesia for tomada, por exemplo, em comparação com o romance – a métodos alternativos de publicização dos seus trabalhos, autores da chamada “geração mimeógrafo” traziam uma coloquialidade e uma ludicidade que buscavam tornar acessível uma literatura moderna mergulhada na contracultura e nos movimentos sociais que tinham adquirido maior visibilidade e relevância na década anterior.

A poesia, naquele momento, emergia em um cenário no qual as outras artes também se reinventavam: as tendências intelectuais e estéticas presentes no Cinema Novo – e, ao mesmo tempo, no Cinema Marginal; o experimentalismo do teatro engajado de grupos como o Arena, o Opinião e o Oficina; o concretismo das artes plásticas e seus diálogos com os poetas da mesma corrente; e, principalmente, o movimento tropicalista – que talvez tenha tido um alcance mais expressivo de público devido ao sucesso dos festivais de música transmitidos pela televisão –, ocupando e sustentando seu espaço no contato com as outras artes e servindo ainda como um importante catalisador da resistência no contexto do golpe militar.

Após contrair dívidas externas em nome da ideia de um “milagre econômico” (1968-1972), o Brasil passava por um clima ufanista permeado por inaugurações de grandes monumentos, estradas, pontes, viadutos e outras obras de dimensões enormes financiadas por iniciativas privadas – que se fortaleceram, no âmbito econômico, em meio a incentivos à expansão do comércio exterior e, em nível social, ao aumento de ofertas de emprego, ainda que os salários tenham sofrido um declínio real em alguns casos e, em outros, tenham crescido em taxas muito inferiores em relação ao rendimento e à produtividade per capita. Nesse contexto, por mais que a infraestrutura social melhorasse e momentaneamente gerasse uma impressão de que o País todo se fortalecia, a massa da população tinha cada vez menos participação nas decisões e nos resultados desse “crescimento” – e era justamente esse público que as artes da época visavam a atingir.

Mais imediata e difusa do que obras que se encontravam no cânone naquele momento, e ainda estão até hoje, da idealização de Gonçalves Dias à inquietação de Drummond, a poesia marginal da geração de 70 se espalhava pelo cotidiano das pessoas na maior parte das vezes não pela aquisição de livros, mas em folhetos, pichações e outras manifestações alternativas, buscando maior coloquialidade e descontração em contraposição à carga rígida e séria normalmente associada aos livros. Dessa forma, os autores tomavam conta de todo o processo de publicação, sem a mediação de editoras, distribuidoras e livrarias e, portanto, com uma liberdade maior para falar sobre suas experiências e opiniões.

O reconhecimento acadêmico e crítico, entretanto, chegou com mais intensidade apenas após a publicação de 26 Poetas Hoje (1975), volume organizado por Heloísa Buarque de Hollanda, rendendo uma maior visibilidade aos autores reunidos na antologia, que se uniram na pretensão de mostrar, por meio de técnicas que envolvem a fragmentação e a justaposição de várias alegorias, uma repressão ao conhecimento e a fantasias emergentes no imaginário coletivo, como no poema de Cacaso, abaixo. Para Heloísa, a geração de 1970 viveu um sentimento de sufoco no qual “a força crítica da linguagem sente necessidade de alegorizar um estado de coisas não apenas subjetivo, mas conscientemente assumido como coletivo”.

 

Logia e Mitologia

 

Meu coração
de mil e novecentos e setenta e dois
já não palpita fagueiro
sabe que há morcegos de pesadas olheiras
que há cabras malignas que há
cardumes de hienas infiltradas
no vão da unha na alma
um porco belicoso de radar
e que sangra e ri
e que sangra e ri
a vida anoitece provisória
centuriões sentinelas
do Oiapoque ao Chuí

 

(Cacaso)

 

A radicalidade e o desdém característicos de outra poetisa do mesmo grupo, Ana Cristina Cesar (1952-1983), que tem os principais episódios de sua vida pessoal frequentemente associados à própria obra, trazem constantemente à tona uma alternância entre recordação e estranheza, promovendo uma maneira mais livre de enxergar a literatura, tida principalmente como a desconstrução de um sujeito em forma de texto. A poetisa, apelidada de Ana C., e responsável por escrever um grande volume de textos, se pensarmos em seu curto período de vida, já foi homenageada pela FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty) em 2015, chegando até mesmo a ter seu último livro publicado em vida, A teus pés (1983), na lista de livros obrigatórios para o vestibular da Unicamp – ainda considerado um dos principais termômetros de concepção e difusão do cânone literário brasileiro.

Transitando entre a música e a literatura, Waly Salomão (1943-2003) e Torquato Neto (1944-1972), são alguns dos nomes ativos tanto na Tropicália quanto na poesia da mesma época. Seus textos apontam para uma descontinuidade e uma quebra de ideias que reinterpretam elementos folclóricos e históricos brasileiros, ao mesmo tempo que separa os vários “brasis” que coexistem juntos em um contexto mundial marcado pela tensão da Guerra Fria, durante a qual eclodiam diversas outras guerras pelo mundo, no Vietnã, na Coreia, na China, etc.

Na perspectiva dos poetas marginais da década de 2010, entretanto, não se trata apenas da exclusão em relação ao mercado editorial, mas principalmente da discriminação, especialmente de autores negros, autores que moram na periferia ou autores que fazem parte da comunidade LGBTQI+, com possíveis interseções entre os três contextos. Escritores como Sérgio Vaz e Ferréz aproximam seus textos, dessa vez majoritariamente em prosa, de um caráter documental que permite analisar toda a estrutura por trás da subjetividade de quem vive em ambientes periféricos, aonde as informações e oportunidades custam muito mais a chegar.

Embora se aproxime de uma estética documental, a instabilidade e o desajuste dos sujeitos em relação à sociedade também são constantes nessa nova literatura marginal, assim como o uso de recursos ainda mais diversos do que aqueles usados nos anos 1970, já que a tecnologia fornece muitas outras possibilidades no contexto atual. Conteúdos digitais no geral, de livros digitais – até mesmo com composições visuais e/ou animações – a canais no YouTube, como Sociedade dos Poetas Subversivos, que também podem ser tidos como meios marginais de se consumir literatura (e música, na maior parte do casos), têm gerado muitas mudanças e debates a respeito das alterações causadas na e para a literatura.

Afirmar de forma categórica que certa obra é marginal vai além de registrar geograficamente sua origem periférica, mas marca uma restrição e uma separação em relação a outras ao impor, pelo discurso, uma fronteira que outra obra sem esse rótulo não seria obrigada a enfrentar. Para o escritor Ferréz, “qualquer coisa que surge na favela é deslegitimada, não tem que ter rótulo”. E é contra essa desclassificação que ele continua seu depoimento dizendo que “a favela ficou calada por muito tempo. Todo aparato editorial é feito para privilegiar as mesmas pessoas da elite, como se empregadas domésticas não ‘precisassem’ ler. O movimento tem nome”. Nesse sentido, o posicionamento que pode ser tido como vanguarda é não apenas uma recusa ou indiferença diante da possibilidade de fazer parte do cânone, mas uma (re)afirmação das próprias condições daquele meio periférico – não diverso e harmônico, mas fundamentalmente desigual.

A poesia marginal, com isso, assume uma função não apenas de conscientização e entretenimento, mas também uma criação de cidadania, uma função pedagógica diretamente conectada com a formação de novos poetas, expandindo o uso da palavra para aqueles que ainda não conheciam outras possibilidades que a língua fornece.

Outros expoentes dessa literatura de caráter profundamente social são: Reinaldo Moraes (1950-), que, com seu romance Pornopopeia (2009), explora o cenário underground paulistano e o envolvimento de um cineasta com um controverso assassinato; a poetisa cearense Dinha [Maria Nilda de Carvalho Mota (1978-)], autora de De Passagem mas Não a Passeio (2010) e educadora da rede pública de ensino em São Paulo; e Nelson Maca (1965-) e sua Gramática da Ira (2015), que mistura versos sobre a identidade e a representatividade negras com ritmos e encadeamentos recorrentes no afrobeat e no rap.

Estar marginalizado difere sim na linguagem, nas relações sociais e na história da vida de alguém e é justamente essa diferença que deve ser ressaltada e discutida. Não vivemos em uma sociedade diversa e coesa, vivemos em uma sociedade desigual – e ter a oportunidade de ser um escritor lido, escutado, discutido e divulgado exige uma série de obstáculos que impedem a maioria da população de atingir esse patamar. A literatura em geral não deve ser uma expressão elevada e fechada. Pelo contrário, é muito mais importante que um texto seja acessível – sem ser raso ou um mero reprodutor do que vivemos no cotidiano – e que convide outros indivíduos a pensar junto sobre as mais diversas questões.

Ainda que certa legitimação só se confirme por parte do público e da crítica tempos depois em qualquer linguagem artística – especialmente na literatura, que, no geral, demanda um maior tempo para consumo em relação às outras artes –, é possível estabelecer diferentes olhares e nuanças para aquilo que vem sendo produzido por pessoas cujo contexto é muito singular diante daqueles grupos que, historicamente, nos acostumamos a escutar e ler até agora.

 

+Para saber mais:

 

CAMPEDELLI, Samira Youssef. Poesia Marginal dos Anos 1970. São Paulo: Editora Scipione, 1994.

HOLLANDA, Heloísa Buarque de. 26 Poetas Hoje. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1975.

HOLLANDA, Heloísa Buarque de. “O espanto com a biotômica vitalidade dos 1970”. Impressões de Viagem – CPC, Vanguarda e Desbunde. 1960/70. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004.

SUSSEKIND, Flora. “A literatura do eu”. Literatura e Vida Literária – polêmicas, diários & retratos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

 

Acervo de Ana Cristina Cesar (IMS)
Biografia de Torquato Neto (Site Oficial Tropicália)
Sobre o “Milagre Econômico” Brasileiro (FGV)
Entrevista com Heloísa Buarque de Hollanda sobre Literatura Marginal (TV Brasil – YouTube)

 

Clique aqui para consultar os livros dos autores citados no texto disponíveis nas Bibliotecas do CCSP

 

Texto: João Vitor Guimarães
Revisão: Paulo Vinício de Brito
Ilustração: Beatriz Simões

 

*Publicado em 9 de abril de 2019

Posts Relacionados

Comece a digitar sua pesquisa acima e pressione Enter para pesquisar. Pressione ESC para cancelar.

De volta ao topo
plugins premium WordPress