Crônicas da Casa: Crenças

Crenças 

De tudo o que nós, seres humanos, podemos inventar, imaginar e conceber, construímos um mundo com leis, regras, diretrizes, normas, enormes e complexas redes de departamentos, organizamos os números e as letras de forma a criar palavras e algarismos que ditam o curso de nossas vidas, por meio de fichas, formulários e banco de dados – ou pelo menos de grande parte dela. Dia após dia, fazemos descobertas sobre outros planetas, sobre as células do corpo humano e sobre as forças da física que regem o universo e impactam em nossas pequenas vidas. E tantas são as vezes em que somos engolidos pela concretude das coisas. Pelo duro concreto da vida cotidiana. Uma poeta disse, há dias em que olho para as pedras e só vejo pedras. 

Mas, em meio a tudo isso, ainda conservamos, secretamente, no íntimo de nossos corações, crenças e desejos misteriosos. Imagens inacabadas, diálogos não ditos, lugares que os mapas não conseguem localizar, mundos que nos permitem um pouco mais. Um pouco mais de pulsação. Um batimento cardíaco um tanto mais intenso. Uma palavra que não poderia ser dita e celebrada se não fosse ali: no teatro. 

Alguém sai do trabalho e pega o ônibus, ou o trem, ou o metrô. Caminha alguns metros, ou quilômetros e chega à uma sala, ou à uma praça pública, ou a um enorme teatro. Não importa onde, em qual espaço físico esse pacto irá acontecer, ele não deixa de ser um pacto, firmado entre artistas e público. Aquele alguém se senta em uma cadeira, ou no chão, ou em uma confortável poltrona e permite que algo aconteça. Algo que ninguém sabe o que é, ainda. Um susto. Um choro compulsivo. Uma crise de riso. Um calor terno no coração. Uma alegria de existir. Um respiro e o lembrete: estou vivo. 

No teatro, antes existe o trabalho árduo da criação, do costurar, martelar, garimpar, escrever, movimentar, ensaiar, fazer de novo, de novo e de novo a mesma cena, a mesma partitura e dizer infinitas vezes as mesmas palavras. Existe um ofício que exige disciplina e rigor. Que exige o trabalho da imaginação necessária para que, em algum lugar, em algum momento do dia ou da noite, pessoas se encontrem e selem o combinado não dito de inventar e acreditar juntas. Os atores em cima de um palco vazio dizem: estou em uma piscina. E a plateia enxerga uma piscina. Enxerga a água, a textura, o movimento e ouve o barulho cada vez que o braço da atriz mergulha profundamente. 

É tudo mentira. Mas é tudo verdade. É tudo agora. Está acontecendo. Existem testemunhas. É a mesma peça em todas as sessões de uma longa temporada. Mas cada apresentação será para sempre única. Singular. Porque o tempo não está congelado, e o espaço, embora estático, está transformado por uma capacidade de desejar, imaginar e acreditar, que os seres humanos teimam em exercer. 

O espetáculo acaba. Alguém se levanta, aplaude e vai para casa. Ao se deitar, olha para o escuro do quarto e ri sozinho, lembrando da história do personagem que conheceu há poucas horas atrás, e que estará para sempre em seu coração, como um ente muito querido. 

Texto: Tessi Ferreira 

Ilustração: Gustavo Ivo

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