Sim, temos monstros sagrados em nossa literatura. São sagrados porque não se comparam a nada que veio antes ou depois deles. Situam-se tão fora da curva que fica difícil encontrar seus pares, seus companheiros de jornada, aqui ou fora daqui. Dos três – Machado de Assis, Clarice Lispector e João Guimarães Rosa – dois tiveram datas redondas relacionadas a eles em 2017.
Rosa morreu em 1967, ano em que publicou um de seus livros mais misteriosos e complexos, o compacto conjunto de contos Tutaméia. Clarice morreria dez anos depois, em 1977, deixando como última obra um dos pequenos romances mais incisivos da literatura brasileira, A hora da estrela. Ambos nunca foram considerados fáceis. O grau de dificuldade que escapa de seus livros é de fato imenso, mas a paixão com que foram escritos também é evidente. Só essa paixão justificaria a permanência de Tutaméia e A hora da estrela no coração dos leitores.
Tutaméia é uma tentativa máxima de contenção e concentração, uma novidade entre os trabalhos caudalosos do autor de Grande sertão: veredas. Já em A hora da estrela encontramos uma escritora considerada elitista às voltas com um tema que poderia ser visto como popular (a história de uma empregada doméstica, imigrante nordestina, soterrada pela incomunicabilidade), não fosse a excelência e a universalidade do resultado final, cheio de símbolos e camadas de leitura, no melhor estilo das vanguardas do século XX.
Tanto Rosa quanto Clarice pertencem àquela classe cada vez mais rara de artistas empenhados até a medula na beleza e na profundidade de suas obras. Morreram, mas vão durar, como duram os clássicos universais.
Por isso o Centro Cultural São Paulo decidiu falar desses dois grandes escritores brasileiros (ainda que Clarice tenha nascido na Ucrânia). De novembro a dezembro, debates, conferências, filmes e leituras dramáticas sobre JGR (O nome do Rosa) e Clarice Lispector (Que mistérios tem Clarice?) estarão em nossa ordem do dia. Vamos sim falar de nossos monstros!
Cadão Volpato é diretor do CCSP