Escrever em dança: deslocar o olhar é a atual edição do CCSP Dança em Diálogo que, em 2017, tem como foco a dança programada no Centro Cultural São Paulo, sendo analisada pelos integrantes dos encontros (abril a outubro). Como resultado teremos resenhas autorais, que avaliadas e problematizadas pela curadoria – somente em aspectos técnicos da linguagem e de sua clareza – são aqui difundidas. Ao final do programa, pretende-se ver tecida uma rede de vozes e olhares, cada um deles de responsabilidade de cada autor, mediante uma proposta de análise, debate, escrita e difusão sobre dança, descolonizando-se abordagens mediantes discursos diversos sobre a arte, seus contextos, história e contemporaneidade.
O 5º ciclo do Dança em Diálogo se constituiu de dois encontros para discutir as relações entre dança e teatro, analisando-se propostas de abordagem da cena teatral a partir da cena da dança contemporânea, com posterior assistência a dois espetáculos teatrais da temporada 2017 do Centro Cultural São Paulo: História de lenços e ventos, do Teatro Ventoforte, e Scavengers, da Cia Artera de Teatro. Dessas ações resultam as resenhas aqui postadas.
*As resenhas publicadas são de inteira responsabilidade de seus autores, expressando exclusivamente as suas opiniões.
Histórias de lenços e ventos, por Tatiana Avanço Ribeiro
Concebida na década de 1970, a peça teatral de Ilo Krugli Histórias de lenços e ventos revolucionou os conceitos de teatro infantil de seu tempo. Foi mesclando o uso de teatro, bonecos, lenços, papéis, música ao vivo e uma farta variedade de elementos de cultura popular que o Teatro Ventoforte criou uma obra sensível, na qual cada unidade artística converge para um todo expressivo, acolhedor e otimista.
A sentença de origem do roteiro – quando os bonecos se trancam numa mala, é preciso fazer teatro de qualquer jeito – direciona o desenvolvimento da obra para um viés metalinguístico, ao questionar quais são as bases do teatro, quais seriam os elementos fundamentais que permitem a estruturação de uma obra, uma vez que os elementos centrais do início da peça – os bonecos – já não estão disponíveis. A partir do momento em que eles se ausentam, os lenços tomam a cena e exigem que os corpos dos atores, que antes ficavam predominantemente ocultos para realçar a movimentação cênica dos bonecos, entrem em ação. O corpo, portanto, revela-se como elemento básico do teatro: os lenços são metáfora e pretexto para que o movimento corporal se manifeste.
Trata-se de um corpo livre, natural, cuja movimentação age em função da dramaturgia e imprime um caráter folclórico e comunitário. Há presença de coreografias simples, dançadas em conjunto e acompanhadas de canções cantadas pelos próprios atores, o que evidencia uma forte conexão entre a palavra e a expressão corporal.
A música, contudo, não é somente palavra, é também ritmo para a inspiração e intensificação do movimento corporal. A presença de músicos na cena acentua relações entre som e movimento, e permite uma qualidade de interação que não seria a mesma caso houvesse apenas uma gravação; algumas cenas com efeitos sonoros não teriam o mesmo impacto caso dependessem de sons gravados, que poderiam soar artificiais ou mesmo caricatos. Sendo assim, a escolha da música ao vivo é sábia, e nos remete à espontaneidade do fazer musical da cultura popular e do circo.
Para as crianças, o enredo soa simples e cativante: um lenço chamado Azulzinha se lança aos ventos em busca de liberdade, é capturado juntamente com todos os outros lenços pelo rei Metal Mal, mas no fim todo são salvos pelo corajoso herói Papel.
Para os adultos, revela-se uma dramaturgia carregada de discussões políticas, que discorre sobre liberdade de expressão, repressão, controle estatal e, sobretudo, resistência. Dentre os elementos, a resistência é o mais forte: é ela que determina o desenrolar da história, pois Papel, como um Dom Quixote, sonha para além do seu quintal, para além da aceitação passiva da realidade crua que se apresenta a ele. Não apenas sonha, mas luta em busca de uma alternativa. Este talvez seja um grande recado a ser absorvido ainda hoje, quando se vê o gradual retorno de um cenário político autoritário e a necessidade de se resgatar energias para garantir o espaço e a voz da arte nacional.
Scavengers, por Maisa Aurora Marcos
Com a intenção de experimentar textos inéditos, e comemorando 15 anos de trajetória, a Companhia Artera de Teatro escolhe um texto do escocês Davey Anderson. A peça é acompanhada por composição musical ao vivo de Tiago de Mello e o interessante cenário é de César Rezende Santana (inspirado no artista plástico Basquiat).
Tratando de um homem que está com sua empresa falida, o mesmo decide forjar a sua morte e assim esposa e filha acabariam recebendo um seguro com o qual possam se manter. Enquanto está no anonimato, junta-se a um grupo de moradores de rua, os scavengers, termo definido pela companhia como “homens à deriva, em busca de sustento e espaço” e pelo autor do texto como “pessoas que permeiam os detritos da sociedade de consumo tentando exprimir sua existência”.
Há realmente uma dimensão emocional e política neste texto, pois a temática evoca nossa relação com nosso entorno, com a pobreza, além de nossas limitações financeiras e, ainda, com interesses individuais se colocando acima dos interesses coletivos.
Falar de temáticas como essas requer dos atores a ativação de processos internos instauradores de corporeidade e de experiência, buscando uma conexão entre “ação interna e externa” e “ação externa e interna”. No entanto, ocupando o lugar de espectadora quase não chegou a mim a presença destas temáticas através dos corpos dos atores.
Foto de capa: Imagem de divulgação da peça Scavengers