“Breves e inéditos” e os descompassos do circuito de cinema brasileiro

Tendo como ponto de interseção o recorte da mostra anual Breves e inéditos, convidamos os curadores de audiovisual do CCSP, Carlos Gabriel Pegoraro e Célio Franceschet, e o diretor do filme Rifle – uma das obras que integram a programação da mostra atualmente em cartaz –, Davi Pretto, a exporem seus pontos de vista sobre o descompasso entre as possibilidades de produção e exibição do circuito do cinema nacional. Abaixo, você confere a entrevista com os curadores.

 

Quais são os problemas que contribuem para a má distribuição no país?
Célio Franceschet: Acho que um dos principais fatores que contribuem para essa má distribuição é que as pessoas responsáveis em gerir não são da cultura, elas são investidores e empreendedores. Mas existem casos e casos, como, por exemplo, a Supo Mungam, que é administrada por um casal de curadores dedicados a trabalhar com cinema independente. Outra distribuidora que segue um pouco essa dinâmica é a Imovision. O Jean Thomas Bernardini, dono da empresa, é um cinéfilo assíduo. No geral, existem distribuidoras que seguem uma lógica totalmente mercadológica, chegando a nem ter noção do conteúdo daquele filme. E, em São Paulo, as salas de cinema já agregam valor ao filme. Vou dar um exemplo: suponhamos que eu lanço um filme – vou intitulá-lo de O empreendedor – no Cinemark. Qual é a ideia que você vai ter desse filme? Aí faço a mesma coisa, só que no Reserva Cultural ou no Espaço Itaú. A ideia que você vai ter desse filme é outra.

Carlos Pegoraro: E existem, também, casos de mau planejamento no lançamento. Um exemplo é o que aconteceu com Bom comportamento, dos irmãos Safdie, que foi um filme aclamado pelo público; no entanto, ele foi lançado em paralelo à Mostra Internacional de Cinema, cujo público é justamente o público desse filme. E, por ter sido lançado nessa época, o filme conseguiu ficar em uma única sala de cinema e foi mal divulgado, pois todo o público destinado a esse tipo de produção estava acompanhando a Mostra.

Além dessa visão mercadológica que acaba atrapalhando o planejamento da distribuição de um filme, tem a questão da forte influência de filmes americanos. Até existe uma lei que contemple uma cota de filmes nacionais por cinema, mas, mesmo assim, acaba sendo uma cota muito baixa.  Às vezes, você tem o lançamento de um filme blockbuster e essa mesma produção ocupa três salas do mesmo cinema, deixando duas para outros filmes. E isso acaba interferindo não só na visibilidade da produção nacional, mas no alcance que o cinema estrangeiro tem aqui.

CF: Um dos contrapontos é a forte ligação que o mercado nacional tem com o cinema francês, o que acaba fazendo com que as salas tenham um maior fluxo de produções francófonas. Mas não temos uma distribuidora que tenha uma ligação forte com o mercado asiático, por exemplo. E isso também depende do interesse das salas exibidoras, do público e da própria distribuidora.

 

As leis de incentivo suprem esse problema?
CF: De certa forma, sim. É o caso da Vitrine Filmes. Em particular, essa distribuidora sobrevive com filmes brasileiros, só que eles sobrevivem graças a editais de distribuição da Prefeitura. A Sessão Vitrine, por meio da qual eles lançam os filmes, é da Petrobras.

CP: Mas isso não necessariamente justifica que o problema já foi resolvido, pois essa questão também depende do interesse das salas exibidoras. Até existe uma cota de filmes que eles precisam exibir, mas o espaçamento entre o lançamento de um filme nacional é muito grande e os horários das sessões são reduzidos.

CF: A grande verdade é que precisamos de uma política de formação e educação cinematográfica. Tivemos essa experiência com a Mostra São Paulo Cinema Anônimo e pudemos concluir que o público de cinema brasileiro é muito baixo. Então, nós, enquanto exibidores, ficamos de mãos atadas na equação “precisamos gerar lucro x propor um maior fluxo de filmes nacionais”. É claro que existem exceções, como foi o caso de Aquarius, Hoje eu quero voltar sozinho, Que horas ela volta? e só. A proposta da mostra que a gente passou aqui era justamente discutir o cinema anônimo, e o público que tivemos, perto do que costumamos ter, foi bem baixo. 

 

Existe espaço para a diversidade das mídias alternativas no cinema nacional?
CF: A gente experimenta muito e um dos exemplos disso é o Janela Aberta, que é um projeto em que a pessoa inscreve seu trabalho e o filme não passa por uma curadoria; não é que qualquer coisa inscrita passe em nossas salas, pois existem regras no edital de inscrição que acabam filtrando os projetos. Mas, no geral, esse projeto é direcionado para pessoas que buscam espaços para exibição de filmes experimentais. E, na própria programação do Breves e inéditos, existem filmes que foram formatados para TVs e não para uma tela de cinema, como o Certas mulheres, que foi lançado em DVD, e Twin Peaks.

CP: O caso do Twin Peaks é interessante, pois abriu a discussão sobre os possíveis formatos de filmes. O próprio diretor, David Lynch, já afirmou que a série é um filme e revistas já o classificaram como um longa-metragem. E, a partir disso, vimos a brecha para debater sobre como classificar os formatos série e filme.

CF: E a ideia de cinema não é só a tela escura, grande e com qualidade, também é a impossibilidade de você parar. É a unidade da obra como um todo, o que, numa obra de 18 horas, é meio impossível.

 

Algumas alternativas para a má apropriação de filmes em cinemas são os festivais. De que forma essas mostras se tornam uma espécie de vitrine na busca por divulgação?
CP: Muitas vezes, os festivais são os lugares onde os distribuidores encontram os filmes, alguns deles já entram em exibição justamente pelas distribuidoras. Mas, geralmente, as pessoas viajam para buscarem filmes antes de eles chegarem às salas brasileiras para poder pegá-los “quentes”.

CF: Os festivais brasileiros são uma oportunidade para os espectadores assistirem a filmes que não estão em circulação em nenhuma sala. Geralmente, quando os filmes chegam em mostras nacionais, como a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e o Festival do Rio, eles já chegam com distribuidoras.

 

Qual seria a alternativa para a quebra da lógica mercadológica da distribuição só daquilo que é visto como “lucrativo”?
CP: Como dissemos, acredito que no Brasil ainda falta uma formação educacional sobre cinema. E um dos países latino-americanos que têm apostado nessa formação, que se inicia desde o ensino fundamental, é a Argentina. Além disso, o país investe em salas em todo o território – se não me engano, são cerca de 300 salas. E o órgão que cuida desse investimento é o INCAA (Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales). O que a SPCine tenta fazer em São Paulo, eles têm em toda a Argentina. Então, eles possuem uma grande produção cinematográfica, e, além disso, há onde exibir. E esse investimento faz com que o processo de formação da população com relação a filmes melhore.

 

Ponto de vista do realizador

 

Davi Pretto responde, também, aos mesmos questionamentos acerca da má distribuição no país. Vencedor de dois prêmios do júri oficial – roteiro e melhor som – no Festival de Brasília 2016, seu filme Rifle é um dos selecionados a compor a programação do Breves e inéditos. Abaixo, você confere a entrevista com o diretor.

 

Quais são os problemas que contribuem para a má distribuição no país?
Acho que não se trata de má distribuição, mas de um circuito exibidor cruel e caduco. Os filmes nacionais, sejam eles de quais tamanhos forem, têm tentado criar alternativas para driblar essa situação, através de um aperfeiçoamento das linguagens de marketing (mesmo dos filmes menores), do uso das redes sociais, da valorização por um circuito alternativo (que vem definhando a passos largos), do aumento dos orçamentos de distribuição etc., mas infelizmente o circuito só fica cada vez mais e mais cruel e caduco. São inúmeros casos de filmes, e não só os independentes, que entram no circuito em uma única sala nas principais cidades, com poucos horários e sem nenhuma chance de ter uma sala exclusiva. Obviamente, não conseguem se manter por mais de uma ou duas semanas nessas cidades ou caem para horários inviáveis. Os exibidores não querem arriscar nada. Não há estratégia de distribuição que aguente isso. É uma disputa que já nasce perdida.

 

As leis de incentivo suprem esse problema?
Existem leis que tentam mudar um pouco esse cenário, mas falta muita coisa. Temos a cota da tela, mas que não tem tanto impacto quando um filme globochanchada pega quase mil salas. Os filmes menores passam longe de qualquer ajuda com isso. Os investimentos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) têm sido certamente um pilar importante na força da distribuição dos filmes menores, mas, como falei, é preciso mudar, também, o conceito do exibidor, senão é dar soco em faca. O Brasil precisa é de salas públicas com apoio contundente do governo para que a lógica de mercado (sessões x ingressos vendidos) mude nesses espaços. Aí sim teremos um circuito que dará conta da força do cinema brasileiro atual.

 

Existe espaço para a diversidade das mídias alternativas no cinema nacional?
As plataformas alternativas são um caminho. O VoD popular que estava sendo elaborado pelo governo federal e a Ancine há dois, três anos parecia uma ideia incrível, por meio da qual pessoas de baixa renda iam ter acesso a um aparelho de VoD com milhares de filmes brasileiros. Infelizmente, pelo que sei, esse projeto foi abandonado. Isso seria criar uma alternativa realmente potente. De resto, Netflix quase não compra filme brasileiro, e outras plataformas ainda são pouco acessadas pelo público.

 

Algumas alternativas para a má apropriação de filmes em cinemas são os festivais. De que forma essas mostras se tornam uma espécie de vitrine na busca por divulgação?
É a velha máxima dos exibidores e distribuidores dar um pouco de credibilidade ou um mínimo de atenção para um filme pequeno porque ele ganhou um ou dois prêmios em Berlim ou Cannes ou fez um circuito forte no exterior. Na verdade, eu vejo isso, cada vez mais, como papo furado. Não vejo real resultado nisso no diálogo e briga por um espaço no circuito. O incrível do circuito de festivais é teu filme se encontrar com um público imenso por onde ele circular. Mas, infelizmente, Ancine e FSA não têm interesse em considerar os ingressos (vendidos ou de graça) nesse circuito. Para eles, isso não interessa, mesmo que num festival como Berlim um filme possa fazer 1500 espectadores em apenas três sessões.

 

Qual seria a alternativa para a quebra da lógica mercadológica da distribuição só daquilo que é visto como “lucrativo”?
Tem que criar sala pública que não siga essa lógica. Os exibidores privados nunca vão mudar de lógica, as salas estão cada vez mais vazias, eles estão desesperados para manter os lucros deles, então, eles não vão ter pena dos filmes que não ficarem em cartaz. O Brasil, sendo do tamanho que é, deveria ter uma rede pública de cinema contundente, mas parece que isso está cada vez mais longe de acontecer num país onde nem a democracia existe mais.

 

Onde fica a responsabilidade do espectador?
O espectador interessado sempre irá atrás de filmes bons, apesar de tudo, mas, infelizmente, esse público tem saído pouco de casa, foi engolido pelo efeito VoD. As raras salas que fogem da lógica do mercado estão cada vez mais abandonadas pelo público, então, o poder público tem tipo se apoiado nisso para fechar essas salas ou diminuir o investimento nelas, o que, obviamente, não é uma desculpa válida, porque essas salas existem para formar público, mas, enfim… O público precisa ocupar essas salas e lutar para que elas sigam existindo.

 

Entrevistas: Danilo Satou e Fernando Netto
Ilustração: Beatriz Vecchia (a partir do filme Patti Cake$)

*Publicado em 9 de março de 2018

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