Bixa Travesty e o boom do cinema queer

“Bixa estranha, louca, preta, da favela / Quando ela tá passando todos riem da cara dela / Mas, se liga, macho / Presta muita atenção / Senta e observa a tua destruição / Que eu sou uma bicha, louca, preta, favelada / Quicando eu vou passar e ninguém mais vai dar risada / Se tu for esperto, pode logo perceber / Que eu já não tô pra brincadeira / Eu vou botar é pra foder”: é com essas palavras que a artista Linn da Quebrada lança seu manifesto. A letra de Bixa Preta, composta por ela, é uma referência autobiográfica e uma das formas com que Linn se expressa e contesta a heteronormatividade imposta em nossa sociedade.

Linn é também a roteirista, junto dos diretores Kiko Goifman e Claudia Priscila, do documentário Bixa Travesty (2018), um longa que discorre sobre ela mesma e que abriu a 26ª edição do Festival MixBrasil de Cultura da Diversidade. Além da composição de suas próprias músicas, a partir das quais faz performances únicas junto de Jup de Bairro, sua parceira de trabalho, Linn pode ser considerada uma artista múltipla, sendo ela mesma seu próprio objeto. E nada melhor do que usar de suas próprias experiências para transgredir a normatividade. É isso que Linn busca transmitir ao longo do filme, que ganhou o prêmio de melhor documentário em festivais de peso, como o Festival Internacional de Berlim e o Festival Internacional de Documentário de Madrid.

O corpo de Linn pulsa na tela e vemos isso como uma necessidade de se expressar e de usá-lo como matéria política. A genitália ali não é apenas uma classificação biológica, ela subverte essa classificação e ganha forma enquanto arma política. É importante também parar e sentir as imagens que nos são colocadas, principalmente aquelas performáticas (agradecemos a Nu Abe, que conservou um arquivo de excelentes performances). E é impossível ficar indiferente a elas. Em poucos momentos do longa vemos uma pessoa frágil em Linn: o choro entra em cena em uma única sequência. Mas também sentimos que existe ali uma pessoa que ama da mesma maneira que transgride. Afinal, o amor é uma forma de revolução. Pessoal e social.

O espaço do sentir é misturado com o espaço da coragem. Para amar, é preciso ter coragem para enfrentar as imposições opressivas da sociedade heteronormativa e patriarcal. Portanto, as formas de amor acabam sendo subjetivas e dependem de cada um vencer seus próprios medos para primeiro se amar e depois permitir ser amado. Caminhamos afinal sempre em luta, de cabeça erguida. E, nesse caminho de luta, podemos por vezes esquecer o que é ser amado. Mas, quando nos sentimos abraçados, o conforto é imenso.

Se pensarmos na importância de termos produções como Bixa Travesty, que vem questionar a sociedade e colocar o foco em personalidades como a de Linn, vemos que o papel da arte é fundamental, seja pela música, seja pelo cinema. Ainda há um longo caminho a ser percorrido. E é nesse momento que a produção artística vem somar peso à militância das ruas.

O cinema brasileiro tem encontrado uma forte expressão em seus circuitos menos comerciais com obras que extravasam as normas sociais. A poética das imagens cinematográficas, que permite a associação livre de imagens documentais e ficcionais, pode também ajudar a questionar o lugar em que a comunidade LGBTQI foi colocada durante todo o percurso historiográfico recente. E é por isso que filmes como Bixa Travesty, Corpo Elétrico (2017) e Divinas Divas (2016), apenas para citar alguns, são de extrema importância para o cinema, mas sobretudo para a sociedade.

Além disso, longas (e também curtas) como esses são de enorme relevância para modificar os estereótipos estabelecidos socialmente e que muito afetam a vida das minorias: filmes que colocam personagens gays, por exemplo, como personagens muito caricatos e associados à comédia; ou ainda que atribuem a esses personagens o status de depravados. Imagens como essas não deveriam ter tamanha repercussão em salas de cinema. E é por isso que títulos como os citados – e outros ainda, como Tinta Bruta (2018), Meu Corpo é Político (2017) e Paraíso Perdido (2018) – precisam encontrar seus espaços e propagar os seus diálogos.

Dar voz a Linn da Quebrada não é apenas contar sua história, mas é contar a história de toda uma comunidade. É encontrar no respaldo da sua vivência um lugar comum em diversos outros indivíduos que lutam diariamente para se sentir parte de um todo. E é isso que o cinema permite. Aliás, a arte de maneira geral.

Não podemos negligenciar o papel da arte enquanto política. Toda arte é política. E é em busca desse espaço de discussão que precisamos pensar o cinema. Ainda há bastante a percorrer e ainda há brechas a serem preenchidas no que se refere ao cinema queer nacional, mas podemos dizer que recentemente vimos um boom de obras que tratam de maneira responsável a questão. E acredito que isso não será (em todo caso, não deve ser) freado. Por mais Linns das Quebradas em nossas telas.

Texto: Caio Narezzi (doutorando em estudos cinematográficos pela Université Lumière Lyon 2 e pela Université de Montréal, colabora mensalmente com o site do Centro Cultural São Paulo)

 

Revisão: Paulo Vinicio de Brito
Ilustração da capa: Beatriz Vecchia

 

*Publicado em 23 de novembro de 2018

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