AIMAR LABAKI (São Paulo, 1960)
É dramaturgo, diretor e tradutor. Seus textos foram encenados, entre outros, por Gianni Ratto, Emílio de Biasi, William Pereira e Débora Dubois. Seus textos mais conhecidos são “A Boa”, “O Anjo do Pavilhão Cinco”, “A Vida em Vermelho” e “A Valsa de Lili.
JORGE ANDRADE (Barretos SP 1922 – São Paulo SP 1984)
Um dos mais expressivos dramaturgos paulistas e brasileiros, retratou diversos panoramas da vida ligada à herança cafeeira; dedicando-se, posteriormente, a temas contemporâneos a sua época e ligados à vida metropolitana. Seu primeiro texto é “O Faqueiro de Prata” (1951). Filho de fazendeiros e tendo vivido a cultura do meio rural, o autor trará para a cena profundas observações desse universo, especialmente sua derrocada e adaptação ao meio urbano, fonte dos conflitos que atravessam a maior parte de suas criações, como “A Moratória”, encenada em 1955 por Gianni Ratto. “Pedreira das Almas” (1958), “A Escada” (1961), “Os Ossos do Barão” (1963) , “Vereda da Salvação” (1964) e “Rastro Atrás (1966) (…) Sobre ele, pronunciou-se o crítico e ensaísta Anatol Rosenfeld: “No seu conjunto esta obra é única na literatura teatral brasileira. Acrescenta à visão épica da saga nordestina a voz mais dramática do mundo bandeirante. É única, esta obra, pela grandeza de concepção e pela unidade e coerência com que as peças se subordinam ao propósito central, mantido durante longos anos com perseverança apaixonada”.
Fonte: Enciclopedia Itaú Cultural.
São Paulo, 25 de maio de 2020
Meu caro Jorge Andrade,
Me perdoe, por favor, se não lhe faço uma visita. Mas como agora apareceu esse convite do Kil Abreu, mando notícias nessa carta. Aqui na terra não se joga futebol, não há roda de samba, muito menos roqueinról. O que eu quero lhe dizer é que a coisa aqui tá… feia.
Desculpa se eu o chamo de você, mesmo sem termos sido apresentados. Isso eu aprendi com nosso mestre em comum, teu primo distante, Décio de Almeida Prado. A primeira vez que fui visitá-lo, ele virou pra mim e disse: -Você é crítico, não é? Então, trate-me por você. Somos colegas.
É claro que havia ironia, humor, naquela fala, como de resto em muito que o Décio dizia quando não estava em público. Mas isso já é outra história.
Te escrevo para dizer que tua obra continua atual. Em parte, trata-se daquela atualidade a que se referia o Plínio: “Não é a qualidade da obra, a realidade no Brasil é que não muda.” Em parte, por que algumas das críticas que te faziam, por exemplo, quando o Antunes montou o Vereda da Salvação, se estreasse hoje, seriam repetidas, mas com um vocabulário muito, mas muito mais chulo.
A direita hoje chama de comunista qualquer um que não concorde com ela. De Oswaldo Cruz a Tiririca, tudo comunista. Já a esquerda, bom, a esquerda também chama de neoliberal tudo que vai da falecida social-democracia até Hitler. Não votou no PT? Fascista. Se bem que no caso da última eleição, quem não votou no PT, ajudou sim a eleger um fascista. Que de novo, fez como todos os patrimonialistas de direita e de esquerda desde que o Brasil é Brasil: levou os liberais para dançar, ganhou o concurso, mas na hora H não casou. Mas isso já é outra história.
Tua obra pode ser lida como uma grande busca pelo Pai perdido, resultando na reconciliação possível com o próprio passado. Teu gênio foi conseguir falar de si mesmo e de nossa tribo ao mesmo tempo. Hoje, mais uma vez, essa busca pelo Pai pode ser uma metáfora perfeita para nossa agonia coletiva. Somos um povo vivendo o grande desamparo de ver uma utopia – ou uma ilusão coletiva dissolver-se no ar. Se o interregno 1945-1964 foi a primavera de um grande verão que nunca houve, 1985-2016 foi um verão
que não teve Carnaval no final. Nem outono. Fomos direto pro inverno.
A recepção da tua obra sofreu muito com as patrulhas ideológicas de direita e de esquerda. A ditadura é claro foi o mais difícil. Não foi a toa que você se juntou aos comunistas do dr. Roberto Marinho e foi escrever telenovela. Logo você que levava tanto pau dos comunistas. Você podia ter encontrado alguma estabilidade financeira na tv. Mas foi logo fazendo uma obra-prima e enfiando a realidade brasileira na tela, sem vaselina. E também sem o romantismo do Lauro, a safadeza sadia do Dias, a loucura do Bráulio ou o talento para o folhetim do Durst. “O Grito” era bom demais pra passar incólume. Não foi à toa que te mostraram a porta da rua, em seguida. Hoje, talvez te deixassem escrever série. Sabe como é, toda vez que o mercado precisa agregar valor a um produto, chama os artistas para darem um salto qualitativo. Mas logo depois, é pé na bunda, que ninguém está aqui para ficar pagando o sujeito para falar mal da gente. Mas isso já é outra história.
Dei essa volta para te dizer que escrever para teatro, nesse sentido, de escrever uma obra poética que sirva de base para uma criação cênica não é mais a definição certa pro melhor teatro feito pelas novas gerações. É claro, sempre vai ter uns malucos que continuam a escrever. Tão aí o Alexandre Dal Farra e a Silvia Gomez levando a tocha com grande qualidade e voz própria. Mas para os coletivos de produção, nós, escritores, estamos na borda da franja. Fazemos bonito na renda em volta, mas não têm lugar pra nós na trama do tecido. Uma exceção talvez seja o Newton Moreno, mas aí é gênio, e gênio não se explica.
Jorge, a palavra escrita é hoje considerada quase um mal necessário. A coisa tá num ponto, que até carta é feita pra ser dita em voz alta e não lida. Essa aqui por exemplo. Foi uma grande ideia do Kil e eu sou muito grato pelo convite. Mas escrevo não para o cidadão na outra ponta ler. É para ele poder nos ver, a nós, dramaturgos lendo para a câmera. Se você não é um Bortolotto, um Renato Modesto, que também são atores, passa o mico que eu tô passando aqui.
Veja bem, não ‘tô criticando o Kil ou a secretaria. Eu mesmo, no lugar dele, teria de fazer a mesma coisa: como é que eu vou explicar pros burocratas da Secretaria da Fazenda que paguei não sei quanto por uma carta que vai ser lida por umas poucas dezenas de pessoas se posso gastar a mesma grana por um vídeo que com certeza chega a algumas centenas? Não por que tenham centenas de pessoas loucas para saber o que eu ou qualquer outro dramaturgo temos para falar, mas por que é vídeo. E vídeo de graça, até
dramaturgo falando.
É claro que se escreve de uma maneira para ser dito em voz alta e de outra para ser lido. Se não soubéssemos disso não seríamos dramaturgos. Mas o que segue aqui é esse híbrido. Um olho nos likes e outro na posteridade. Pensando bem, não é muito diferente do resto da nossa produção.
Já falei demais. Nosso público não têm esse tempo de atenção. Se eu falar mais um pouco, vamos ter de distribuir Ritalina junto com o link. Fico por aqui, se não com a esperança, ao menos com o desejo de que em algum lugar no futuro alguém ainda leia minhas peças, como as suas ainda são lidas. Obrigado, sempre, por tudo.
A Marê manda um beijo para os seus. Um beijo na família, na Helena, nas crianças. A Duca Rachid aproveita pra mandar lembranças a todo pessoal.
Adeus.