A densidade espetacular do cinema

Espetáculo. O que quer dizer espetáculo? A que nos remete esta palavra? Ou talvez a pergunta que devamos fazer seja: O que nos remete a essa palavra? Primeiramente podemos pensar em um espetáculo de dança, em um concerto, uma peça de teatro, e… Enfim, diferentes formas de artes. Mas, afinal, será que essas aproximações são suficientes?O filósofo Guy Debord escreveu e realizou o filme (e também o livro) A sociedade do espetáculo (1973, o livro foi publicado em 1967). Em um ensaio de imagens de arquivo e uma narração em off bastante exigente, Debord tenta compreender o que seria a sociedade francesa da época. Se pararmos para refletir sobre as imagens e palavras de Debord, poderíamos afirmar que o filósofo anteviu o que seria a invasão em massa das mídias sociais em nossas vidas.

Se fizéssemos uma atualização da obra de Debord em 2019, o celular seria a estrela. Esse aparelho que carrega o espetáculo dentro de si é o fator mais pungente da nossa sociedade, que precisa ser vista e adorada a todo instante. Todos precisam estar bonitos e bem vestidos para aparecer dentro da pequena tela (cada vez maior, é verdade). Afinal, a internet é um tribunal aberto em que estamos todos prontos a um julgamento infinito sobre o que consumimos. Além disso, o tempo se tornou um tormento e a velocidade das coisas, uma agonia.

A existência se tornou o teatro do vazio em que todos tentam representar algo mais atraente para o outro. Podemos apreender do filme de Debord que quando a vida individual passa a ser o próprio espetáculo, as pessoas perdem a dimensão da própria incoerência que é o fato de existir. O capitalismo conseguiu se sobrepor nesse vácuo e o consumo de réplicas de gerações cada vez menos distantes no tempo é latente. Podemos lembrar quando a arquitetura se reinventou aos moldes das descobertas de Pompeia, por exemplo.

Um grande exemplo desse caos meramente organizado em que nos encontramos é o filme de Sydney Pollack, A noite dos desesperados (1969, gosto bastante também do título original, They shoot horses, don’t they?). Um exemplo tão agonizante e tão real que quando chegamos ao final do filme sentimos até certo alívio por aquilo, enfim, ter acabado.

A narrativa se passa nos Estados Unidos dos anos 1930 em que uma parcela da população não encontra outra saída para sobreviver à crise senão participar de um concurso em que eles terão que dançar ininterruptamente (salvo alguns minutos de descanso) até que um casal saia vencedor. Acompanhamos no filme a personagem de Gloria Beatty (interpretada por uma esplêndida Jane Fonda), que precisa desse dinheiro para poder continuar a viver. Vemos já nesse início o que viriam a se tornar os reality shows de hoje em dia, em que se assiste ao desespero espetacularizado por uma quantia de dinheiro, mas também pela fama. Afinal, os casais do filme lutam também por um patrocínio de marcas para conseguirem chegar até o fim do concurso.

Andy Warhol já havia compreendido o que era nossa sociedade. A cópia, da cópia, da cópia… Debord também anuncia em seu filme: “O plágio é necessário”. Afinal, o que conseguimos de fato desenvolver no meio de toda essa comunicação incomunicável que vivemos? É tanto barulho que nos sentimos como a personagem de Jane Fonda: desiludidos, lutando contra o próprio fato de ainda sermos, em boa parte, animais que precisam comer, dormir e reproduzir.

Hoje estamos mais atrelados a máquinas que nos transformam, facilitam em alguns aspectos nossas vidas, mas que também mudam nossa relação com o tempo e com a geografia. O consumismo se torna inevitável e nos entregamos, sem muito refletir, ao consumo vazio de bens que seis semanas depois não terão mais sentido.

Também podemos ver a questão da transformação do tempo e da sociedade em Amor até as cinzas (2018), do diretor Jia Zhangke. Acompanhamos a história de um casal que poderia muito bem ser a representação das mutações ocorridas na China, invadida cada vez mais pela cultura ocidental. A personagem Qiao, interpretada pela magnífica Zhao Tao, é de uma profundidade que nos permite mesmo dilatar o que significa sua presença em um país que em pouco tempo sofreu mudanças econômicas significativas. Qiao precisa encontrar seu lugar, após ter ficado presa durante cinco anos em um país que se modificou intensamente.

Às vezes não precisamos de anos para uma mudança ocorrer. Hoje, um simples tuíte consegue construir e desconstruir uma ideia, uma pessoa, o que quer que seja. Seja isso no micro ou no macro. O mundo se comprimiu em um espaço que é a internet e aqui as fronteiras são inexistentes e o tempo também é outro.

Espetáculo, afinal, vem do latim spectaculum, que significa algo para se observar visualmente. Contudo, Debord define o termo dizendo: “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas mediada por imagens”. Debord nunca conheceu o Instagram, tampouco outra rede social. Mas ele conseguiu captar o que viria a ser o cerne da nossa cultura atual: a mediação pelas imagens. Afinal de contas, o que resta de nós além da montagem das imagens que apresentamos em nossos perfis nas redes sociais?

 

Texto: Caio Narezzi (doutorando em estudos cinematográficos pela Université Lumière Lyon 2 e pela Université de Montréal, colabora mensalmente com o site do Centro Cultural São Paulo)
Revisão: Paulo Vinício de Brito
Ilustração: Beatriz Simões

 

*Publicado em: 30 de abril de 2019

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