Entrar em contato com um best-seller já exige, de antemão, certa abertura, ainda que contrastada com a desconfiança gerada por qualquer produto cujo alcance e comunicação são tão ativos e intensos com o grande público. No entanto, a linguagem acessível utilizada pelo historiador israelense Yuval Noah Harari é bem-sucedida ao traduzir pontos tão importantes da macro-história em cerca de 450 páginas, de forma moderna, dinâmica e tornando a leitura prazerosa ao mesmo tempo que retira o leitor e o gênero não ficção de sua comum, porém perigosa, zona de conforto.
Desde o lançamento de seu primeiro livro, Sapiens – uma breve história da humanidade (2011), Harari está em alta nas discussões envolvendo pesquisas mais recentes acerca das relações entre biologia e história que permeiam a trajetória dos seres humanos. Lido pelo grande público e adotado também na biblioteca de influenciadores, investidores, acadêmicos, políticos e personalidades relevantes nos meios de comunicação atuais, Harari consegue sintetizar os pontos principais da vida humana no planeta Terra desde o surgimento do Homo sapiens, há 200 mil anos.
Partindo desse ponto, o livro Sapiens traz um panorama histórico organizado de acordo com as três principais revoluções que afetaram o desenvolvimento do Homo sapiens para o autor: a Revolução Cognitiva, a Revolução Agrícola e a Revolução Científica. Se a primeira é responsável pelo aparecimento da linguagem – e, consequentemente, da história –, a segunda está atrelada ao início da plantação e da pecuária e a última, à admissão da ignorância pelos humanos, à ascensão do capitalismo e à circulação rápida e exagerada de informações, verdadeiras ou não.
A partir da ideia de que o ser humano como conhecemos hoje domina o mundo por, entre outras coisas, acreditar na imaginação e na ficção, Harari desenvolve e questiona conceitos como dinheiro, gênero, escrita, deuses, direitos humanos, etc. Assim, o escritor propõe uma relativização desses elementos e uma reflexão acerca da nossa relação com eles.
Ainda que seja um best-seller, não raro Harari causa desconforto nos leitores que entram em contato com sua obra sem preparação ou sensibilidade prévia, sendo esse sentimento de ruptura e choque um dos maiores trunfos de seus textos. A pesquisa pode até não ser completamente inédita em si mesma, mas a intenção de levá-la a uma parte considerável do grande público o é, ainda mais considerando a forma do texto, que não abandona questões específicas e termos técnicos inerentes aos estudos das ciências humanas.
A certa altura de Sapiens, o historiador analisa que “as duas maiores religiões são o cristianismo e o capitalismo” e que definir e seguir tais crenças pressupõe conceitos como confiança e abstração criadas pelo próprio ser humano. Criamos, assim, um sistema com o qual nós mesmos não sabemos lidar, corroborando a singularidade do Homo sapiens perante as outras espécies existentes no planeta Terra. A questão é que esta singularidade, ainda que nos traga desenvolvimento técnico e uma série de informações, reflexões e questionamentos, não revela aspectos estritamente superiores do ser humano.
Harari é um fenômeno, sem dúvida, mas devemos ter em mente que muito de sua popularidade é originária de uma promoção pesada no exterior e a força que esta divulgação teve ao chegar quando a tradução para o português foi publicada no Brasil, em 2015, depois da consagração do público internacional e junto com o lançamento de Homo Deus – uma breve história do amanhã, o segundo livro do israelense.
Nele, o autor explora as habilidades desenvolvidas apenas pelos humanos, como a linguagem, a evolução tecnológica e a atribuição de significado às atividades exercidas pela espécie. Harari argumenta, no entanto, que o Homo sapiens poderá ser substituído por uma espécie com características mais evoluídas e mais próximas do conceito de super-homem desdobrado por Nietzsche – o que, para o israelense, pode vir a ser o Homo Deus.
O historiador propõe então o dataísmo como uma nova forma de religião cujos ensinamentos incluem a consciência de uma impotência humana diante da quantidade das informações que o ‘big data’ – a base dos mais variáveis volumes de dados – possui a nosso próprio respeito. A evolução tecnológica, sendo assim, supera a quantidade de dados armazenados em comparação aos humanos. A ideia de abrangência, totalidade e simultaneidade do armazenamento de dados contemplados pelo big data interliga a definição de personalidade à ausência de privacidade que já vivemos no mundo globalizado atual.
Harari acredita que o aprendizado da história serve, junto a outros aspectos, “não para reter informações do passado, mas para nos libertarmos dele”, revelando uma perspectiva distinta daquela adotada em livros didáticos e manuais tradicionais de história.
Devido à amplitude temática e estilística, a escrita de Harari alcança um público amplo, indo dos leitores mais exigentes, ou com alguma experiência prévia acadêmica, até aqueles que estão entrando em contato com pesquisas biológicas e históricas pela primeira vez.
As listas dos livros mais vendidos no Brasil contemplam principalmente autoajuda e manuais “práticos e rápidos” para obter soluções imediatas, entre as quais “ganhar dinheiro”, “influenciar pessoas” e “preservar propriedades” se destacam. Neste cenário são surpreendentes, ainda que justificáveis, os fenômenos que Harari conseguiu emplacar em um país onde a ficção é tão pouco consumida, independentemente da faixa etária, do gênero, da classe social ou da etnia. Ouvimos comumente que “não há tempo para ler”, quando, na verdade, o tempo é apenas priorizado para atividades como assistir a jogos de futebol e novelas ou passar boa parte do dia descendo o feed de notícias da rede social preferida do usuário.
Em seu volume mais recente, 21 lições para o século XXI (2018), Harari discute a pós-verdade, conceito segundo o qual histórias e nações inteiras podem ser inventadas, bem como a noção convencional de verdade e mentira é colocada, nesse contexto, como inferior à percepção que seus locutores (e por que não narradores?) têm da realidade. A ideia é, portanto, “analisar mais de perto o aqui e o agora”, focando “nas questões atuais e no futuro imediato das sociedades humanas. O que está acontecendo nesse momento? Quais são os maiores desafios e escolhas de hoje?”
As 21 lições são divididas em cinco partes, sendo elas “O desafio tecnológico”, “O desafio político”, “Desespero e esperança”, “Verdade” e “Resiliência”. Em todas as lições, porém, uma das questões centrais é a escassez do tempo e como esta se reflete na pretensão de estarmos produzindo demasiado, quando, na verdade, nós nos sentimos sempre atrasados em relação ao que já foi feito e como a tecnologia demonstra oportunidades ao mesmo tempo que revela ameaças.
Em uma perspectiva geral, incluindo todos os livros já publicados pelo autor, percebe-se que ele possui uma proposta pretensiosa em sua pesquisa ao procurar contemplar a macro-história de uma forma bem abrangente, ainda que não superficial, registrando grandes momentos históricos de um modo proporcional a nossa época, em que as informações se tornam cada vez mais dispersas e obsoletas. Com este direcionamento, Harari nos leva a questionar nossa relação com o tempo e a forma como registramos os acontecimentos e lidamos com a memória, não apenas as individuais como também as coletivas.
A crença e a informação, portanto, são relativizadas e aproximadas mais do que nunca em um meio que levanta questionamentos como: qual a factualidade que distingue uma notícia do jornal de um conto lido ontem? Qual o intervalo e a mediação existentes entre o que se atribui como real e o que se considera “ficção”? Questões que, se não nos levam à reflexão, no mínimo nos convidam a atribuir uma nova perspectiva de estranhamento e distância àquilo que nos parecia comum e até mesmo banal.
+Para saber mais sobre a obra de Yuval Noah Harari:
HARARI, Yuval Noah. Sapiens – uma breve história da humanidade. São Paulo: L&PM Pocket, 2015.
HARARI, Yuval Noah. Homo Deus – uma breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século XXI. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
Texto: João Vitor Guimarães
Revisão: Paulo Vinicio de Brito
Ilustração: Beatriz Simões