Ondjaki e Rita Carelli comentem perseguição intelectual em pleno Século XXI
Por Alexandre César | Redação CCSP | Fotos: Acervo pessoal
22/08/2025
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Escutar os mais velhos, absorver o conhecimento ancestral de seu povo, de sua família e manter suas raízes, tudo isso é base para a formação de um ser em crescimento, e repassá-lo às futuras gerações é o objetivo dos educadores, professores, escritores e disseminadores de arte e cultura. Questões como essa foram debatidas pelos premiados escritores, a paulista Rita Carelli, e o angolano Ondjaki na última terça-feira, 19, no FLI Sampa, no Centro Cultural São Paulo (CCSP).
Filha da antropóloga Virginia Valadão e do indigenista Vincent Carelli, Rita Carelli teve a grande influência dos pais pelo gosto da leitura, e leu tudo que lhe caiu em mãos na infância. Ainda antes de completar 10 anos, foi com seus pais para o Mato Grosso, onde teve forte convivência com a Tribo Enawene Nawe, povo até então com pouca convivência com o homem branco.
Na tribo, Rita foi ‘adotada’ como filha de uma família nativa, pois segundo a tradição deste povo, toda pessoa oriunda de fora e que passa a conviver na tribo, precisa ser acolhida, e ser responsável por tarefas que lhe cabem pela idade e gênero. E justamente sobre isso, ela narrou uma história curiosa.
Quando eu tinha oito anos, estava numa fase de querer brincar com os meninos, pois eles corriam, subiam em árvores, pescavam, nadavam nos rios, enquanto que as meninas faziam tarefas domésticas, ralavam mandioca, ajudavam a preparar alimentos, iam buscar água, e eu não queria fazer nada disso. Em certas ocasiões acontecia um ritual onde só os homens podiam transitar pelo centro externo das ocas, as mulheres tinham que circundar por trás. Eu, na ânsia de alcançar os meninos para ir nadar no rio, passei pelo meio, a minha mãe adotiva quando viu, saiu por trás das ocas, me pegou nos braços pelo outro lado, arrancou minha camisa, e como eu ainda era criança, não tinha seios, ela falou em sua língua dizendo que eu ainda não era uma mulher, pois ainda não havia menstruado. O interessante é que não havia uma penalidade para o delito de uma mulher passar ali no meio, pois nunca alguém havia transgredido essa lei. O conselho da tribo se reuniu e decidiu que eu seria tratada como menino até menstruar. Esse é um relato que aparece em meu livro Minha Família Enauenê (CARELLI, Rita; LÓPEZ, Anabella. FTD Educação, 2019), onde eu digo “Quando eu quis voltar a ser menina…” – disse a autora.

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No entanto, Rita Carelli lamenta os contornos da atual prática do “cancelamento” que seu livro passou, quando pessoas consideraram seu conto como um relato “imoral”.
O ano era 2019, o livro saiu e teve de cara uma grande aceitação de público, nas escolas, nas bibliotecas. Essa obra ganhou prêmios importantes no Brasil e no exterior, especialmente o Prêmio White Ravens, da Biblioteca de Munique, considerada a maior biblioteca para o público infantil do Mundo. Mas aqui, no Brasil, passei por um processo de cancelamento, muito por causa da época em que começou neste ano, a ponto de um coronel fazer um vídeo dizendo algo como “Olhem que absurdo esse conto”, até professores de todo o Brasil começaram a questionar o que eu estava querendo dizer em querer ser menina outra vez. Eu digo que na cultura Enawene Nawe não há essa distinção de gênero como observamos aqui, estamos na era da informação, mas parece que o Brasil regrediu décadas. Eu não contei algo para criar polêmica, eu fiz um relato da minha própria história, minha experiência e que seria bacana de contar. Eu soube depois que escolas que haviam recebido o livro através de sua Prefeitura pediu para recolhê-los, mas o livro manteve-se firme em outros lugares e está disponível até hoje – afirmou a escritora.
Para Ondjaki, saber ouvir e falar são primordiais na troca de conhecimento que, segundo o autor, aprendeu ainda cedo com suas avós: “Se não há nada de interessante a falar, é melhor manter o silêncio”, disse uma delas, sendo este um ensinamento que ele diz guardar consigo até hoje.
O autor afirmou que é importante buscar conhecimento através da oralidade de quem viveu momentos da vida, do cotidiano, da história, como as pessoas mais velhas do seio familiar ou de amigos próximos, e que o senso crítico também é formado pela boa educação e na busca da leitura.
Indagado sobre como conseguir esse intuito com as crianças de hoje em dia, que representam uma geração que vive muito em frente a uma tela digital, Ondjaki opinou que é necessário apresentar às crianças outros meios de comunicação.
Olha eu acho que em alguns momentos e em algumas culturas está-se perdendo a educação oral através dos mais velhos, dos familiares… não é porque a voz humana está a competir com a voz do vídeo, do TikTok, do Instagram. Essas plataformas têm linguagens mais sedutoras porque, às vezes, são mais rápidas. Não quer dizer que sejam mais profundas, não é? Portanto, eu creio que cabe a cada família, mas também a cada professora, a cada pai, a cada mãe, a cada avó, avô, tentar puxar a criança para outros meios de conhecimento. Neste momento, nós precisamos de retirar a criança. Não é retirar totalmente, puxá-la, retirar um pouco do mundo digital para o mundo mais humano, digamos assim – pontuou Ondjaki.

O FLI Sampa, realizado pela Secretaria Municipal de Educação (SME), em parceria com as Secretarias de Relações Internacionais (SMRI) e da Cultura (SMC), é uma grande celebração da literatura e da cultura, que reúne escritores, artistas, estudantes, educadores e toda a comunidade para promover o encantamento pela leitura e a formação de novos leitores.
Veja a programação completa do FLI Sampa no site da SME.