A criação de um texto dramatúrgico pressupõe a (re)criação dele na forma de uma encenação. Ler um texto teatral e assistir a uma peça, ainda que, teoricamente, as duas experiências digam respeito a uma mesma obra, são duas ações muito diferentes e influenciam a forma como a obra será entendida e apreendida. No primeiro caso, pela imaginação do leitor e, no segundo, pela interpretação das rubricas – as orientações para o diretor, os atores e todo o grande grupo de pessoas responsáveis – do texto original por parte da grande equipe envolvida nos bastidores de uma peça, de produtores e diretores a iluminadores e operadores de som. Dramaturgos, diferentemente de autores de contos e romances, escrevem para um público e um contexto específicos, embora possam ter seus textos adaptados para outros ambientes, audiências e tempos nos quais sofrerão grandes alterações.
Enquanto a leitura de um texto qualquer possibilita o acesso direto às palavras e, portanto, aos nomes das coisas e pessoas que estão sendo discutidas, o cinema e a música, em certa medida, e o teatro, mais concretamente, propõem uma interação entre as coisas em si – ou, ainda, a simulação das coisas em si, o que se aproxima de uma materialidade e de uma tridimensionalidade inexistentes no texto.
O tempo de leitura é obviamente maior do que o de observação de um espetáculo, uma vez que as rubricas são apenas mostradas, e não explicadas, além do ritmo de fala de cada ator e de cada personagem variar. Até o resultado final, ou ao menos o início dos ensaios, no entanto, a atitude de reordenar o texto, isto é, elaborar outro texto, exige uma adequação ao espaço e às condições financeiras da montagem, além de colocar as falas na boca de determinados atores em um tempo muito distinto à concepção do texto.
O drama, que diz respeito a uma ação desenvolvida progressivamente, é fechado em si e, ao contrário do formato épico, que expõe pequenas fatias temporais destacadas de um todo, o drama apresenta uma única ação contínua convencionalmente caracterizada por começo, meio e fim. A estrutura dramática, ao invés de trabalhar com episódios, concentra-se em atos compostos de cenas comumente determinadas pela entrada e pela saída de personagens, e ainda marcadas por ganchos que levam aos acontecimentos seguintes.
Para um bom desenvolvimento da ação é necessário um equilíbrio entre as cenas de transição, com informações menos triviais para o entendimento do enredo, mas que colaboram de alguma forma para o ritmo do espetáculo, e grandes cisões ou decisões acentuadas pela forte inserção de elementos gestuais/faciais, musicais e coreográficos.
Esses mesmos elementos aparecem ainda em correntes mais carregadas de emoção e intensidade, como no teatro épico expressionista de Sophie Treadwell (1885-1970) e Bertolt Brecht (1898-1956), que, ao contrário da ação em andamento mostrada pelo drama, articula pequenos blocos de fatias temporais episódicas sem uma continuidade imediata entre uma e outra.
Na modernidade, o teatro não necessariamente imita a realidade, mas propõe um tipo diferenciado de formato para ela. Os diálogos muitas vezes são o centro da peça, seja por retomar características essenciais na construção de personagens, como em roteiros naturalistas de Antón Tchekhov (1860-1904) ou Henrik Ibsen (1828-1906), seja por desenvolver as ações em si, como nas tragédias gregas de Sófocles (497-406 a.C.) ou até mesmo de William Shakespeare (1564-1616).
Particularmente no teatro brasileiro, que desde seus primórdios é influenciado pelos modelos europeus e clássicos, a maior ruptura com os padrões estrangeiros ocorreu nas décadas de 1950 e 1960, quando grupos do Teatro Brasileiro de Comédia (o TBC), do Teatro de Arena (hoje Eugênio Kusnet) e o Teatro Oficina Uzyna Uzona se formaram e reuniram dramaturgos como Franco Zampari (1959-1964), Augusto Boal (1931-2009) e José Celso Martinez Corrêa (1937-) encenando as primeiras versões dos que hoje são tidos como clássicos do teatro brasileiro, como O Rei da Vela (1933, encenada apenas em 1967), de Oswald de Andrade (1890-1954), e Eles não Usam Black-tie (1958), de Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006).
No caso de peças estrangeiras, como Chá e Catástrofe, encenada no CCSP em 2019 e traduzida do texto original Escaped Alone (2016), da inglesa Caryl Churchill, a versão, de início, já pressupõe uma interpretação prévia do texto, mesmo que sem uma radical mudança no enredo, nas falas e até mesmo nos nomes das personagens e dos lugares frequentados ou mencionados por elas, que continuam os mesmos. O ato de tradução pressupõe a adaptação, já que um dos objetivos centrais é cativar e questionar a plateia – e, por isso, fazê-la entender quais os aspectos fundamentais do texto.
Um texto contém múltiplos olhares – do escritor, do editor, do revisor, do leitor/espectador – assim como a peça, que passa por alterações sugeridas por produtores, atores e funcionários dos bastidores, sem falar no diretor, que comanda as funções artísticas desempenhadas por cada um. Cada vez mais, ler roteiros teatrais é uma prática pouco comum por aqueles que não trabalham na área, o que gera um estranhamento ao nos depararmos com o texto em sua forma própria acentuadamente distinta da prosa ou da poesia, nas quais o autor não se distancia tanto assim da obra.
A dedução e o acompanhamento do público dirigem-se a tudo aquilo que é obsceno – literalmente, irreproduzível em cena, em um jogo entre o que é mostrado ou não à plateia –, em um movimento que exige a captura de atenção e uma consequente interpretação daquilo que está sendo exposto ou não. O teatro, portanto, assim como a aula ou o sermão, depende diretamente da interação com o público e da resposta (imediata, nos três casos) da plateia.
Ao mesmo tempo que um dos caminhos para se interessar por leitura possa vir a ser o teatro, não é apenas o texto que deve ser levado em consideração quando lemos ou relemos um texto dramatúrgico, mas toda a concepção que o contato com a obra retrata, não no sentido de pensar naquilo que o autor quis dizer, mas naquilo que a peça, em sua singularidade, diz e quais articulações ela exige quando levada para um formato de uma representação cênica com toda a sua tridimensionalidade e sua conexão com o real.
+Para saber mais:
KAYSER, Wolfgang. “Problemas da construção do drama”. In: __________. Análise e interpretação da obra literária. Editora Sucessor Coimbra, 1963.
RYNGAERT, Jean-Pierre. “O que é o teatro contemporâneo?”. In: _________. Ler o teatro contemporâneo. Tradução: Andréa Stahel M. da Silva. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1998.
ROSENFELD, Anatol. “O gênero dramático e seus traços estilísticos fundamentais”. In: _________. O teatro épico. São Paulo: Editora Perspectiva, 1965.
Texto: João Vitor Guimarães
Ilustração: Beatriz Simões
Revisão: Paulo Vinício de Brito
*Publicado em: 27 de maio de 2019