Recentemente fui convidado a rever a filmografia completa de Quentin Tarantino, que não é extensa, comparada à de outros diretores. Atualmente com nove filmes produzidos e realizados entre 1992 e 2019 (o diretor acaba de lançar seu nono filme, Era uma Vez em Hollywood, em Cannes), Tarantino é uma mistura de sangue, boa música, diálogos cults e uma montagem impressionante. É verdade que a violência é presente do início ao fim de sua cinematografia e isso acabou me gerando alguns pesadelos. Mas a que ponto todo esse derramamento de sangue nos faz compreender a sociedade em que vivemos?
O cinema de Tarantino (aqui não vamos julgar o caráter do diretor enquanto pessoa, mas sim o seu trabalho cinematográfico finalizado) pulsa violência na mesma medida que ele pulsa sexo. Os dois são intimamente ligados e, às vezes, a pornografia invade a violência de uma maneira tão sutil que apenas revisitando sua obra pude enxergar. A dimensão que ele criou entre seus personagens cults e suas ações desmedidas beiram a indústria pornográfica do nonsense de roteiro.
A tensão entre os personagens é o que irá proporcionar a violência extrema em seus filmes. É um desejo de ver ejacular sangue de membros amputados. Uma necessidade de transformar o outro em um corpo inerte. É difícil separar a imagem fálica das armas com a potência masculina que os filmes dele implicam. Cães de Aluguel (1992) é testosterona do início ao fim. A violência ali é justificada por um roubo e uma traição. Não sabemos exatamente o que foi roubado (uma maleta), mas também não sabemos quem é o policial infiltrado. Quem irá nos
contar os segredos da trama é a montagem (muito bem feita, por sinal). Assim como em Pulp Fiction: Tempo de Violência (1994), o segredo sempre está na montagem.
Tarantino conseguiu captar a essência de uma boa edição de imagens para criar suas tramas. Diferentemente de Hitchcock, que partilha com o espectador o segredo da narrativa, Tarantino o esconde e vai revelando com uma técnica de montagem que lhe é peculiar. Jackie Brown (1997) e À Prova de Morte (2007) nos surpreendem do início ao fim. Aos poucos, Tarantino dá ao público a chave para o acontecimento que acabou de se passar.
Da mesma maneira, vamos aprendendo sobre os personagens com o desenrolar da narrativa. Nunca sabemos exatamente o que tanto os personagens querem, qual é o objeto que os move. Tirando os que classifico como a trilogia da vingança – Kill Bill vol. I e II (2003, 2004), Django Livre (2012) e Bastardos Inglórios (2009) –, em que os personagens estão em busca de uma vingança do passado, seja ele uma reparação histórica ou uma reparação pessoal, os outros filmes estão sempre ligados ao poder. Contudo, o poder não emana apenas do dinheiro, mas sim do poder divino de dar ou retirar a vida de alguém. Apontar uma arma para alguém é algo corriqueiro em Tarantino. Disparar (ou decepar) é algo inevitável.
Assistir a um filme de Tarantino é saber que vamos lidar com corpos ensanguentados. Mas há uma sensualidade prazerosa em toda essa violência. O filósofo Paul B. Preciado nos fala da dimensão snuff politics, em sua obra Testo Junkie (2008), e que implica muito bem o fascínio pelo cinema tarantiniano. Estamos prontos para ver a morte do outro e, em certa medida, realizar aquilo que não somos capazes de fazer: disparar o gatilho. A violência faz parte da
natureza humana e ultimamente estamos cada vez mais à flor da pele, assim como Butch Coolidge (Bruce Willis, em Pulp Fiction), que vai descobrindo aos poucos sua natureza assassina.
Paul B. Preciado nos explica que os filmes snuffs seriam um dos exemplos da er farmacopornográfica, conceito desenvolvido por ele mesmo, e que explicam nossa cultura melhor que outra coisa. A obsessão pela morte é algo que Tarantino transforma em ficção, diferentemente dos snuffs. Existe algo de pornográfico em todas essas ações violentas.
Como não pensar nas obsessões pelas partes anatômicas do ser humano: o pé feminino, o close no olhar, as mãos (com sangue ou sem)… Enfim, ele constrói um quebra-cabeça anatômico que muitas vezes beira o fetichismo da indústria pornográfica. Nesse sentido, não podemos descartar também a formação cinéfila do diretor, principalmente pelos filmes B do movimento cinematográfico australiano ozploitation.
Toda essa violência é adicionada de uma bela pitada de muito bom humor, de absurdo e uma ótima trilha sonora que deixa tudo pop. Em Jackie Brown, muitas vezes o humor dos diálogos vem associado à violência. O humor de Tarantino parte do inesperado. Ou seja, ele vem pela quebra do que seria lógico: alguém simplesmente dispara uma arma por estar cansado de ouvir o outro falar.
Compreender o que move essas personagens a partirem para a violência é entender um pouco o dinamismo que estamos vivendo. Essa necessidade de extravasar no ódio o que reprimimos em nós é algo que vemos com mais frequência. Transformar isso em uma esfera sedutora, com boa música, fotografia bem trabalhada e uma sensualidade escondida, eu diria que é a forma
como Tarantino consegue exprimir em ficção e imagem o que nós vivemos atualmente. A violência tarantiniana fala muito sobre nossos desejos e talvez por isso siga conquistando um público em larga escala.
Texto: Caio Narezzi (doutorando em estudos cinematográficos pela Université Lumière Lyon 2 e pela Université de Montréal, colabora mensalmente com o site do Centro Cultural São Paulo)
Revisão: Paulo Vinício de Brito
Ilustração: Beatriz Simões
*Publicado em 4 de junho de 2019