No Porão do Centro Cultural São Paulo, sempre aos sábados à tarde, um grupo de pessoas constrói coletivamente histórias. Lugar emblemático para a cena teatral paulistana, o Porão tem acolhido e fomentado múltiplas narrativas e encenações. No caso das histórias que circulam pelos seus corredores nas tardes de sábado, entretanto, o foco não é propriamente a criação artística. Mas a dramatização de situações é posta em cena como estímulo para a troca de experiências de outra natureza, ainda que de equivalente potência transformadora.
Longeva iniciativa acolhida pelo CCSP há mais de 15 anos, o Psicodrama Público propõe sessões coletivas e abertas a qualquer pessoa gratuitamente. Não é preciso nem se inscrever para participar. “Percebo que o que fazemos, e como fazemos, faz a diferença, instaura uma nova dinâmica nas relações, uma nova lógica de pertencimento, uma nova política que traz para si a corresponsabilidade de uma ação, da cocriação”, diz Mariângela Wechsler, psicodramatista e uma das coordenadoras do projeto.
Fundado e desenvolvido por Jacob Levy Moreno, ao lado de sua esposa, Zerka Moreno, o psicodrama foi reconhecido, primeiro como uma forma de terapia de grupo e, depois, se estendeu a outras formas que envolvem o universo da psicoterapia. Utilizando ações e movimentos profundos por meio de questões que desenvolvem nossa compreensão de nós mesmos e dos outros, a terapia psicodramática permite à pessoa encenar o passado para melhorar o futuro.
Quando os papéis da cena são atribuídos, cada um é encorajado a anunciar a verdade em público. Isso transforma o ator em um participante ativo, confrontando questões e dilemas do dia a dia. Os sentimentos experimentados durante a dramatização permitem ao participante transformar sua perspectiva, seja em suas próprias ações e pensamentos, seja em ações e pensamentos potenciais de outras pessoas envolvidas na situação. Isso possibilita que ele faça novas conexões e quebre padrões antigos de comportamento e pensamento.
Frequentador de longa data do Centro Cultural, Felipe Cabral participou pela primeira vez do Psicodrama Público do CCSP em maio. Ele faz terapia há sete anos, mas seu psicólogo, apesar de ter formação psicodramática, não costuma aplicar as práticas nas sessões por estar mais voltado à área fenomenológica. Cabral buscou se informar mais, então, sobre o psicodrama e soube dos encontros que acontecem na instituição pela agenda mensal. “A primeira questão levantada durante a sessão foi aprender a sonhar. E eu entendi isso como o primeiro passo para almejar um objetivo que eu queira, pois tenho bastante dificuldade com isso”, afirma.
O que mais o surpreendeu foi o fato de a prática conciliar atividades lúdicas com o trabalho contínuo dos sentimentos, estabelecendo uma concretude maior nos objetivos que influenciam no cotidiano. “Foram duas horas de performance, o que é bom, pois uma consulta costuma durar 50 minutos. Costumo falar 20 minutos, depois o psicólogo fala mais 20 e o restante é só choro. E aqui não. Tudo é muito dinâmico, um treino constante de empatia. À medida que absorvo as experiências que as pessoas compartilham, elas acolhem a minha”, diz ele.
Para Mariângela, o fato de esse compartilhamento de experiências acontecer num espaço público como o CCSP faz toda a diferença. “As intervenções e experiências podem transformar o espaço público numa clínica social ao dar conta dos sofrimentos e criar novas formas de subjetivações.”
Não é de hoje que o Centro Cultural coloca em foco a discussão e a prática do cuidado psíquico no conjunto de suas ações. Durante quase 20 anos, o Ateliê de Artes Plásticas desenvolveu o projeto Arte e Saúde mental, inspirado na trajetória de Nise da Silveira e pautado pelo estímulo à criação e fruição artística de pacientes da Clínica de Psiquiatria do Hospital do Servidor Público Municipal de São Paulo.
A preocupação em iluminar o debate acerca da saúde mental no contexto de instituições públicas de cultura tampouco se restringe ao CCSP. A alguns quarteirões daqui, a vizinha Vila Itororó sedia a Clínica Pública de Psicanálise, que, desde 2016, oferece sessões de análise gratuitas no galpão do conjunto arquitetônico tombado e atualmente em processo de restauro pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo e pelo Instituto Pedra. Construídas no século passado como moradias, as edificações que formam a Vila, após a restauração de suas ruínas, se tornarão um centro cultural.
De abril de 2015 a março de 2018, porém, um centro cultural temporário se “ergueu” no galpão anexo à Vila, com diversas ações programadas com o intuito de ampliar as reflexões acerca das obras do pátio de casas e dos múltiplos usos e práticas que aquele espaço poderia ter (desde março de 2018, a programação cultural é gerida apenas pela Secretaria Municipal de Cultura). Uma delas, a Clínica Pública de Psicanálise, se mantém até hoje, caminhando na mesma direção de experiências semelhantes, como a Clínica Aberta de Psicanálise na Casa do Povo e o projeto Psicanálise na Praça Roosevelt, que, surgidas em 2017, objetivam democratizar o acesso à psicanálise. “O encontro num espaço público não é neutro, produz conteúdo psíquico na relação, ainda mais um tipo de lugar público que é um centro cultural, um lugar para o qual as pessoas vão para produzir vida, não um lugar de doença que, paradoxalmente, um hospital é, e que traz consigo toda uma dinâmica de relação e gestão de sofrimento a partir da lógica do tratamento, da cura de quem está doente”, diz Daniel Guimarães, um dos psicanalistas que atendem voluntariamente nos plantões da Vila, aos sábados.
Os atendimentos são feitos tanto individualmente – mediante a retirada de senhas – quanto em grupos. “A história da Clínica se mistura com a prática, porque não tinha o atendimento grupal no começo. Nós tivemos que fazer porque percebíamos que havia muitas pessoas indo ao plantão sem conseguir a senha, mas elas ficavam ali sentadas num banco, conversando entre si e, de repente, aquilo já era um grupo. O público produziu essa coisa e a gente deu uma forma para esse arranjo”, conta ele.
As dinâmicas coletivas que tanto a Clínica quanto as sessões de Psicodrama estabelecem em suas práticas terapêuticas parecem reforçar a conexão intrínseca – porém, muitas vezes, fragilizada – entre as noções de subjetividade e coletividade, privado e público. O fortalecimento desses vínculos produz não só outros estados psíquicos, mas também, em consequência, outras possibilidades de atuação e inserção do indivíduo na sociedade. “Cidadania não é só ter acesso ao que a cidade produz: é você próprio produzir a cidade. Se você pode fazer parte da construção do que é a cidade e ser um sujeito da própria vida social é outra coisa. Isso tem efeitos de saúde psíquica, de desalienação”, afirma Daniel.
Nesse sentido, segundo Mariângela, é fundamental devolver “as cidades aos sujeitos. Ou seja, às suas necessidades, por meio de espaços públicos que possam ser ‘ilhas’ pelas ideologias e metodologias a serviço do cidadão que quer ‘existir’ nesse oceano de ondas enormes que o tragam; que pode refletir e que precisa de grupo como caixa de ressonância para seu pertencimento”.
Das muitas urgências que ambas as experiências apontam, uma delas sobressai em nossas conversas: a de que, se o elo entre subjetividades e coletividades é indissociável, as marcas do nosso estar no mundo em sociedade se inscrevem necessariamente em nosso sofrimento psíquico. “Esse sofrimento não é só um problema individual, de uma pessoa que não sabe lidar com algum conflito, mas é dialético. Essa pessoa existe neste mundo, neste tempo histórico, nesta cidade, neste bairro, nesta situação, teve certos encontros, com certas pessoas, foi recebida no mundo de certa forma, foi amada ou foi abandonada… Tudo isso conta e é grupal”, pontua Daniel.
Texto e entrevistas: Fernando Netto e Vinícius Máximo
Ilustração: Luiza Zelada
*Publicado em 13 de junho de 2018