SOLANGE DIAS (Santo André, 1965)
Mestre em Artes pela UNICAMP. É diretora, dramaturga e educadora teatral. Integrante do Teatro da Conspiração, em que realiza montagens desde 2000. Como dramaturga escreveu, entre outros textos, “A Princesa e a Costureira” (2016), a partir da obra de Janaina Leslão, indicado ao premio de Melhor texto adaptado ao prêmio Coca Cola/FEMSA e Prêmio APCA/ 2016 (Melhor Espetáculo de Diversidade de Gênero para crianças).
JOÃO DAS NEVES (Rio de Janeiro, 1934 – Belo Horizonte, 2018)
Diretor, escritor, ator, iluminador, cenógrafo e produtor cultural. Contribui para a formação intelectual e estética de grupos teatrais de várias partes do Brasil, provocando discussões em torno das múltiplas linguagens e da necessidade de realizar um teatro político sem perder de vista a dimensão da beleza e da estética. João se vincula ao Centro Popular de Cultura (CPC), onde se torna responsável pela sessão de Teatro de Rua. Depois do golpe civil-militar de 1964, os integrantes do CPC se rearticulam em torno de um novo projeto: o Grupo Opinião (1964-1984), um dos principais polos de aglutinação da esquerda carioca e o primeiro coletivo a engajar-se na luta contra a ditadura civil-militar brasileira. Entre suas direções estão “A Saída, Onde Fica a Saída?”, encenada em 1967. Entre suas peças destacam-se “O Último Carro (1976)”, “Mural Mulher (1979) Na segunda metade dos anos 1980, o teatrólogo muda-se para o Acre, onde contribui com a fundação do Grupo Poronga, responsável por montagens engajadas na causa ambiental e social, como “Tributo a Chico Mendes” (1988)
A partir da década de 1990, a temática da negritude torna-se recorrente em sua produção. Tem destaque nesse panorama sua direção de Zumbi (2011). Clássico de Augusto Boal (1931-2009) e Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006), a peça tem uma leitura atualizada, o que proporciona um debate mais sistemático com o momento atual das discussões sobre a questão.
Fonte: Biblioteca Itaú Cultural.
_ JOÃO, CHEGOU CARTA PRA VOCÊ!
Querido João!
Esses dias me peguei com uma saudade de você. Mas daquela saudade boa, sabe? Imensa. Uma saudade cheia de imagens de sua presença nos rios de encontros com outras presenças tão singulares. Sem contar a saudade da presença de suas palavras escritas e ditas, no papel e na cena.
Sinto falta de seu discernimento sobre as pequenas e grandes coisas da vida. Ainda mais nesses tempos que correm por aqui.
Estou com saudade de alguém que sempre acreditou na possibilidade da arte para transformar as pessoas, este país e o mundo e, pra isto, você se colocava inteiro em tudo que fazia.
Sinto falta deste sentimento de alguém que lutava por uma arte radicalmente livre de todas as amarras, mesquinharias e hipocrisias. Que amava incondicionalmente este Brasil, este trem que vive descarrilhando. Você, que é um brasileiro e tanto!
Na verdade, João, confesso: tenho vivido envolta nesta saudade como uma ponte de travessia pra tentar me desafogar de um mar de questionamentos, de não entendimentos do que vem acontecendo com a humanidade. Esta saudade, João, é uma tentativa de encontrar todos os dias, sua coragem de cantante- brincante em mim.
Meu amigo, como contar pra você sobre o universo de emparedados em que estamos vivendo neste momento?
Como contar pra você sobre um país, sobre um mundo em que vivemos como autores e intérpretes de um papel que não sabemos como conduzir?
O que estou dizendo? Você sabe o que é isto, pois foi com este mundo que você sempre dialogou poeticamente com um teatro tão radical, tão quixotesco, não é?
Ai, João, mais do nunca, nosso trem continua correndo desgovernado, sem rumo, sem freios e, pior, com maquinistas maníacos por corpos despedaçados de sonhos e utopias.
Estamos numa viagem drástica, em discursos de conduta que definem quem pode viver ou morrer de acordo com os ganhos ou perdas numa bolsa de valores em que a vida de uns, tem muito mais valor do que a vida de outros.
Mas isto você sempre soube, eu sei.
É que preciso falar o que você já sabe pra, ao escutar a minha voz falando estas palavras-imagens, eu não me perca em desistência, pra que gente que acredita na potência da vida acima de tudo , não se perca em meio àqueles que entendem a vida como morte de sonhos, entende? Porque senão a gente sucumbe, e desiste, e esquece que temos muitas coisas ainda por fazer, lutando por uma humanidade que não pode estar perdida.
Ao mesmo tempo eu sei, e sei que você também sabe, e isso é que lindo, João, porque tem a ver com você, com sua coragem que busco em mim, e que faz você sempre tão presente mesmo estando distante que, neste trem lotado, abarrotado, vivem muitos autores e intérpretes que, como iniciantes na arte do teatro, têm a vocação e a perseverança, muitas vezes tímida, às vezes deslocada, com vozes trêmulas, mas não menos potentes, a força para gritar que vamos encontrar sim uma saída e, com certeza, não será pulando deste trem, não será matando em nós o desejo de transformação deste mundo que nos foi imposto.
Em outras melhores palavras que são suas: temos que reinventar novos mundos em que caibam todos os mundo, não é assim?
João, aqui me despeço, querido, desejando que minhas palavras cheguem a você juntas à imensidão deste céu que é o mar de Minas, a este quintal que é o mundo não recluso, a este sol que ilumina nossos ideais de luta e , finalmente, às suas palavras:
“Quem sabe ali,
Onde os ruídos se calam, Repousem palavras
Não pronunciadas Pendentes do teto Cobertas de musgo Enquanto ardem”
Com Carinho
Sol
Santo André, outono de 2020.