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Entrevistas
Ricardo Rodrigues e Renato Ribeiro falam sobre o espetáculo Prot{agô}nistas - Movimento negro no picadeiro
A programação foi a última realizada por Lizette Negreiros, grande referência para a arte e cultura negra brasileira. Celebrando a negritude e homenageando nossa grande curadora e artista, vinte e um artistas sobem ao palco para dançar, cantar, atuar e ocupar seus lugares como protagonistas!
Tessi Ferreia
CENTRO CULTURAL SÃO PAULO
Como se deu a idealização e concepção de Prot{agô}nistas?
Ricardo Rodrigues
ENTREVISTADO
Ela se deu a partir do convite de um festival de circo, chamado FIC, promovido pela Prefeitura de São Paulo. Eu fui convidado a conceber e dirigir, pra isso eu comecei a formar uma equipe, então veio o Renato Ribeiro, como palhaço, pra pensar uma banda, a partir de sonoridades que eu já tinha na minha playlist, e também Washington Gabriel, como palhaço, pra pensar no corpo de baile, que são elementos triviais no circo, tem uma banda, tem sempre um corpo de baile pra fazer costuras, a sonoridade do espetáculo, a transição de uma cena pra outra, enfim. A partir desse núcleo a gente levantou esse leque de, naquela ocasião, 18 artistas, era por aí, hoje somos 30 em um coletivo. E aí surgiu Prot{agô}nistas, desse jeito, estreamos no dia 7 de abril de 2019 e não paramos nunca mais, nem com o isolamento social*.
*Foram realizadas apresentações online do espetáculo.
Tessi Ferreia
CENTRO CULTURAL SÃO PAULO
Quais foram/são as principais referências para a montagem do espetáculo?
Ricardo Rodrigues
ENTREVISTADO
As principais referências foram os próprios integrantes do elenco, então é um material que cada um tinha, que a gente já vinha assistindo. A gente se assiste, o que é uma coisa muito difícil. Estamos sempre muito ocupados com a nossa produção, a nossa realização em cena, e muitas vezes fazendo produção pra outros, por isso que não dá tempo de falar “hoje eu tô livre, vou ali assistir meu amigo”. Isso é muito difícil, mas a gente pratica, então foi possível e fácil levantar essas pessoas. Tem a Mariana Per, que tem seu repertório no Spotify, o Melvin Santhana, a Jaque Silva, que está chegando com seu repertório, Tô Bernardo, que hoje também assina a direção e os arranjos da banda toda, junto com a produção e administração do Re Ribeiro.
Renato Ribeiro
ENTREVISTADO
E a galera da cena também, né.
Ricardo Rodrigues
ENTREVISTADO
E a galera da cena, sim. Que é o rolê de ir pro picadeiro pra ver quem está fazendo e de que forma está fazendo. Tem gente muito potente. Tem dois números que eu quero citar, que é o número da Tatilene, uma das aerialistas, ela faz um número de tecido, mas no número original ela dá um texto, toca um pandeiro, samba e depois sobe no tecido. E generosamente ela abriu para que a banda fizesse a sua parte, o corpo de baile fizesse a outra parte e ela, dentro de tudo isso, realizasse o seu protagonismo no tecido. A mesma coisa com a perna de pau, também era um número pronto, completo, com começo, meio e fim, e ganhou essa outra plasticidade, de entrar outras pessoas na composição da cena, de ter um coletivo, um coro que está muito presente ali, em uma cena de batalha de rua. Então são duas cenas icônicas que dão essa dimensão de que Prot{agô}nistas tem muito lugar para expandir.
Renato Ribeiro
ENTREVISTADO
Tem um ponto legal que é: no primeiro ensaio que a gente fez com todo mundo nós fomos nos vendo, vendo os números, e foi esse lugar da generosidade de dizer “eu consigo ajudar aqui”, “eu consigo fazer aqui”. Nesse lugar de generosidade, de ir abraçado e dizer “putz, me ajuda aqui e eu te ajudo ali”. O número do Gui era um solo, e hoje está todo mundo em cena, ele faz um duo com a Tatilene, faz um duo com o Nonato, ou seja, botou todo mundo na roda no número dele.
Ricardo Rodrigues
ENTREVISTADO
Os números, a gente já tinha visto eles, as músicas também, mas trazê-los nesse formato, nessa sequência, nessa narrativa, dá um outro lugar pra todas essas letras e corpos. Constrói o que Prot{agô}nistas quer dizer. Tem outra coisa, desse encontro da sala de ensaio, que é a disponibilidade de todos, e também o encantamento de ver o outro. Os primeiros ensaios foram assim: te mando uma música no WhatsApp e você adequa o seu número para essa musicalidade/letra, e depois, na sala de ensaio, você faz com a voz de quem compôs, cantando. Quem tá cantando nunca viu uma imagem do que ele canta, e então existe a imagem. Quem está fazendo não é mais playback, é uma voz que tá jogando junto. Foi um choque que deixou todo mundo extasiado e junto até hoje.
Tessi Ferreia
CENTRO CULTURAL SÃO PAULO
Prot{agô}nistas exalta e celebra a cultura negra no picadeiro. Como essas narrativas negras aparecem no espetáculo?
Ricardo Rodrigues
ENTREVISTADO
São corpos negros. Abrir uma cortina, nessa cidade de São Paulo e ver corpos negros, só, já é uma grande informação, e aí as reações são múltiplas, é chocante, é agressivo, é apaixonante, é esquisito, é tudo. Cada espectador traz uma experiência e uma formação de vida, então é pra perguntar no final do espetáculo: e você? Como tá pra você? Como foi isso aqui?
Renato Ribeiro
ENTREVISTADO
Tem uma coisa na celebração, um lugar que é: as músicas trazem essas imagens que são compostas em cena, igual quando a gente fala da beleza do cabelo negro, e aí tem todas as mulheres em cena, a música fala do cabelo pixaim, mas no elenco tem mulheres carecas, de black, de trança, de dreads, cabelo alisado, cabelo encaracolado, mostra todas as belezas do cabelo. Tem uma música que fala de amor, e a gente coloca um corpo negro pra protagonizar esse amor, porque geralmente quando se fala de amor, se trata de um amor entre pessoas brancas, e a gente escolhe colocar um corpo negro retinto em cena. Mesmo quando a gente traz o Robert com a peruca loira, propomos a desconstrução do erudito, do piano erudito, e aí entra um Marvin Gaye, um Michael Jackson, pra ajudar ele a desconstruir a imagem que é aquele homem tocando um piano clássico em cena.
Tessi Ferreia
CENTRO CULTURAL SÃO PAULO
Um detalhe especial em Prot{agô}nistas é justamente o número de pessoas em cena, é um número grande, e isso é muito desafiador. Como foi esse processo pra vocês?
Ricardo Rodrigues
ENTREVISTADO
Sempre será um desafio deixar esse coletivo unido e conseguir produzir para estar em cena. Vender esse produto no mercado cultural é um desafio o tempo todo. Essas palavras são reais e a gente tem que lidar com elas sem romantismo: produto cultural, mercado cultural. Mas na criação, espetáculo de circo sempre tem muita gente, tem o corpo de baile, tem a banda, os palhaços, trapezistas, etc. Então eu prezei por manter isso, conquistar isso só com um elenco negro. Onde estão os negros no circo? Não estão em cena, estão na bilheteria, no café, na pipoca, na barreira, que é quem faz a segurança, e são artistas muito potentes. Às vezes estão numa cena ou outra, mas o dono do circo não é preto, ainda tem uma relação de “lona grande senzala”. Quando os pretos chegam aqui, a gente potencializa eles, muito bem potencializado. Protagonizar, vem daí, juntar esse time pra fazer um espetáculo onde a gente ganha notoriedade, visibilidade e o centro da cena. Protagonizar. Vinha essa palavra o tempo todo durante os ensaios e a montagem. Fechar que chama Prot{agô}nistas foi um processo, de estamos protagonizando. Aí a gente enxerga no meio dessa palavra – que tá no plural porque não tem um, são 21 – a palavra Agô. Então falamos: é isso mesmo! Coloca chaves, não parênteses, nem aspas, porque chave abre portas, e vai ser Prot{agô}nistas no plural com esse Agô pra dizer um comunicado de chegada, não um pedido de por favor, com licença. Uma das raízes do Agô no iorubá é um comunicado de chegança, de estamos aqui, vamos conviver. Aí vem a parte do mercado: como trazer todas essas pessoas sempre? São 30, temos sempre 21 em cena, e com muita competência para poder substituir uns aos outros.
Renato Ribeiro
ENTREVISTADO
Todo mundo já rodou, já fez substituição.
Ricardo Rodrigues
ENTREVISTADO
A gente consegue transitar porque todo mundo tem uma carreira consolidada fora de Prot{agô}nistas, mas todo mundo quer estar nesse projeto. E dialogar com o mercado pra contar essa importância. Dá pra fazer com menos? Dá, mas é tão bonito ver um tecido e doze pessoas em volta. Só um tecido, é só legal, mas doze pessoas em volta é incrível, uma perna de pau e todo mundo dançando junto.
Renato Ribeiro
ENTREVISTADO
Aqui precisamos acontecer em coletivo.
Ricardo Rodrigues
ENTREVISTADO
Acontecer em coletivo!
Tessi Ferreia
CENTRO CULTURAL SÃO PAULO
O que Prot{agô}nistas se propõe a dizer ao público, levando em consideração as multilinguagens que aparecem no palco?
Ricardo Rodrigues
ENTREVISTADO
É uma celebração acima de tudo. Eu entendo a arte como um lugar pra você sair do seu trivial, do seu cotidiano, então é um entretenimento com qualidade, com conteúdo, sempre. Nós estamos pra entreter, se não seria outra coisa. Vamos nos divertir. Primeiro isso: a celebração. E depois, essa narrativa circense, que traz todos esses elementos, mas que não são aleatórios e gratuitos, é uma sequência que mostra essa grande chegada do circo, pela plateia, chegamos sempre pela plateia porque é um lugar que acham que nos cabe, apenas. A gente pouco ocupa o palco, então em Prot{agô}nistas nós subimos da plateia para o palco, é simbólico, é uma ocupação.
Renato Ribeiro
ENTREVISTADO
É uma reintegração de posse.
Ricardo Rodrigues
ENTREVISTADO
Boa! Tem um palhaço e uma bailarina que são pretos. Uma bailarina preta a gente não vê nos grandes ballets, porque eles são eurocêntricos, brancos, mas tem muita potência preta lá. Tem o malabarismo, que normalmente é masculino, o malabarista, a gente tem uma malabarista, que joga facas e que ainda simboliza uma divindade africana. É muita responsabilidade num momento só. Tem dois corpos pretos que encerram o espetáculo em uma cena que fala de amor, e você vê dois corpos pretos masculinos, mas não masculinizados, porém fortíssimos, sabe? Tem uma complexidade bonita nessa trajetória toda do espetáculo, um monte de pinceladas que a gente não sabe como o público percebe, esse é o meu ponto de vista, criei, criamos, sabemos que está por aí, mas…
Renato Ribeiro
ENTREVISTADO
São muitas camadas… Tem um ponto também de falar de toda pluralidade da negritude que tá no palco, do colorismo, de todos os tons de pele preta. O Brasil é isso, essa é nossa negritude, nossa afrodiáspora..
Ricardo Rodrigues
ENTREVISTADO
O circo permeia, mas a gente vai dando outras informações, que para alguns é celebração, para outros é paulada, e tudo bem.
Tessi Ferreia
CENTRO CULTURAL SÃO PAULO
Até porque a gente (como artistas) nunca temos controle total de como chega pro público, né?
Renato Ribeiro
ENTREVISTADO
Sim!
Ricardo Rodrigues
ENTREVISTADO
Sim, com certeza. E tem muitas coisas que acontecem, que não são legais. No dia da nossa estreia, no dia 7 de abril, na mesma noite, estava também acontecendo os oitenta tiros no Rio de Janeiro, então a gente pensa: devemos colocar? Como o público vai reagir? Não importa, temos que falar. Enquanto acontece uma cena, acontecem também muitos fatos que essa cena representa. Depois Paraisópolis, e não para, então a gente não pode parar de falar, para que as pessoas saibam que aquilo acontece. É um museu de memória viva, uma celebração com memória viva.
Entrevista e edição: Tessi Ferreira
Revisão: Isabela Pretti
Entrevistados: Ricardo Rodrigues e Renato Ribeiro
Fotos: Amanda Mirella e Cassandra Mello