Quem fez, quem faz é uma seção do site do CCSP que procura colocar luz sobre trabalhos fundamentais para o funcionamento da instituição, mas que, por diversas razões, permanecem “invisíveis” ao público. Parte da equipe de curadoria desde a década de 80, Lizette Negreiros traz com sua dedicação diversas inovações para para o teatro infantil e jovem na cidade de São Paulo, contribuindo com projetos importantes no Centro Cultural. Leia a seguir a entrevista completa:
Em que ano você entrou no CCSP, como foi isso? Você já entrou trabalhando na curadoria de teatro infantojuvenil?
Ainda ontem me perguntaram quanto tempo eu trabalhava aqui. Deve ser uns trinta e poucos anos. É um tempo longo, né? É uma vida inteira aqui no Centro Cultural. Eu entrei na década de 80 como pesquisadora de assuntos culturais, substituindo o Magno Bucci. Antes era pesquisadora de assuntos culturais, agora sou curadora de teatro infantil e jovem. A nomenclatura vai mudando com o tempo, né? Mas o cargo sempre foi de fazer a programação do teatro dos pequenos.
Como se deu a sua formação? Como foi a graduação, o mestrado…
Então: nem mestrado e nem graduação, né? Muito pelo contrário: foi a especialização. Eu pertencia ao teatro amador lá em Santos, e vim pra São Paulo fazer a peça Morte e vida Severina, do João Cabral de Melo Neto. Eu viajei o Brasil inteiro com essa peça. Depois disso eu fiquei em São Paulo, fiz depois muitos outros espetáculos, trabalhei no SESI por oito anos…
Eu também fui presidente da Associação Paulista de Teatro pra Infância e Juventude, a APTIJ. As pessoas ligadas à associação queriam a reformulação da dramaturgia infantil, a busca de autores novos que trouxessem uma linguagem e histórias cabíveis para qualquer criança, pra todas as idades, não importa, mas que tivessem um bom conteúdo. Tínhamos pessoas fundamentais conosco, como a Tatiana Belinky e o Clovis Garcia. A Tatiana é uma autora muito importante até hoje, ela tem muito cuidado com o que escrever e o que ensinar pras crianças. O Clovis era professor da ECA, crítico de teatro pra criança. Tinha a Ingrid Dormien Koudela também, que era da USP. Mesmo hoje tem o Dib Carneiro, que está fazendo um site, o Ilo Krugli, o Vladimir Capella, o Sítio do pica-pau amarelo, tem todas essas coisas que me deram um referencial. E é bom porque isso também faz com que você se recicle, se renove, com que você saiba do seu potencial, daquilo que você gosta de fazer. Daí eu fui assim, aprendendo.
Conte acerca da sua trajetória profissional. Faça um resumo de tudo o que você fez ao longo do tempo antes do CCSP.
Bom, como eu disse, eu vim do teatro amador lá de Santos. E pra quem vem de uma cidade do litoral e não conhece nada na capital, vem arriscar, e já entra num espetáculo chamado Morte e vida Severina, do João Cabral de Melo Neto, com o Silnei Siqueira dirigindo, é a glória, né? Quase não acontece isso. Mas no meu caso aconteceu!
Eu sei que sem querer eu li na coluna do Hilton Viana que estavam fazendo o teste pra Morte e vida Severina no Teatro Arena, com a companhia do Paulo Autran. Daí eu e a Cleide Queiroz, que é uma atriz amiga minha e que todo o meu histórico tá ligado a ela, combinamos de fazer o teste juntas. Eu e a Cleide viemos pra São Paulo com o coração na mão, sabe? Na hora tava o Silnei Siqueira, que era o diretor, estava o diretor musical e o Ary Toledo também. E, assim: você até faz o teste, mas depois fica esperando, esperando… Ai meu Deus do céu, que agonia!
Um tempo depois nós recebemos um telefonema dizendo que tínhamos passado. Viemos embora em 1969 pra fazer Morte e vida Severina, e viajamos o Brasil com ela. Depois fiz outros espetáculos, fui pro SESI. Nesse meio tempo foi mais trabalho, menos trabalho… Ganhei prêmios, cheguei a cantar no Municipal cheio da classe teatral, na festa da APETESP pros artistas. É bom quando a gente consegue fazer coisas bacanas, né? E nesses anos todos eu conquistei muita coisa bacana… Conquistei mesmo!
Fiquei nessa rotina por muitos anos até chegar na presidência da APTIJ, que foi onde eu conheci o Magno Bucci. Foi ele que me indicou aqui.
Conte um pouco sobre a sua trajetória como atriz.
Eu fiz várias peças de excelência. Eu digo isso não é pra me exibir nem nada, é que foi um nicho de trabalho que eu me dei muito bem, eu tinha muita facilidade de fazer papéis. Eu adoro estar em cena, e se possível cantando. Fiz muito teatro pra criança e pra adulto também. Porque tem que saber bem os dois papéis, quando você está com a criança e quando você tá com o adulto.
Teve o espetáculo Chimbirim Chimbirões… Teve a companhia Ventoforte, onde eu fiz a Mãe na peça Bodas de sangue, do Lorca. Geralmente as mulheres que interpretam a Mãe são atrizes brancas, mas o Ilo Krugli, com quem eu trabalhei naquela montagem, me chamou para interpretar e nunca ninguém contestou. Nós fizemos, ganhamos um concurso e fomos pra Holanda, depois pra Itália, pra Bélgica. As pessoas adoravam o espetáculo, era de um vigor muito grande. E isso eu devo ao Ilo, porque ele me colocou.
Trabalhei com o Vladimir Capella, também, no Antes de ir ao Baile. Esse espetáculo em particular foi um divisor de águas, falava sobre a velhice. Eu até ganhei o Prêmio Molière, foi a última vez que esse prêmio foi dado pro Brasil. A Célia Helena ganhou junto comigo nesse ano. Foi bonito, foi lá no Anhembi…
Além disso, tem coisas que aconteceram comigo em cena. No próprio Antes de ir ao baile: tava eu sentada na beira do palco, falando com o público, e uma menina da plateia começou a implicar comigo. Mas ela implicava, ela não deixava eu falar: “não fala, sua bruxa, sua isso, sua aquilo!”… E isso acontece mesmo, porque a criança é sincera e a gente tem que aceitar. Minha personagem deve ter trazido alguma imagem pra ela, havia alguma coisa dentro dela que eu fui e mexi, sem saber!
Teve outra vez, numa outra peça, O gato malhado e a andorinha sinhá. Eu fazia a andorinha. Num dia eu estava cantando e desci as escadas pra ficar mais perto do público, quando veio um menino correndo na minha direção, falando assim: “Andorinha! Andorinha!”. Eu fiquei muito emocionada de ver como ele tava vibrando!
Enfim… O fato é que embora esteja com 78 anos, eu ainda quero voltar a ser atriz, voltar pro palco. E ontem eu tive uma experiência dessa fazendo uma mulher com Alzheimer numa convenção de médicos. Quando eu vi o texto, o que eu tinha que decorar, nossa, fechou meu cérebro e eu não conseguia! Talvez eu tivesse com medo, porque o Alzheimer é uma questão quando a gente fica mais velha; mas eu tinha que decorar. Foi um desafio pra mim, mas deu tudo certo. Eles aplaudiram, ficaram muito emocionados. Acho que tinha mais de 500 pessoas lá. Bom, eu sei que essa experiência me deu, por assim dizer, um “eu ainda posso”, um “eu ainda conquisto plateias”, sabe?
Conte um pouco sobre o trabalho da curadoria de teatro no CCSP. O que você acha interessante destacar para o público?
Bom, acho que a questão da nomenclatura é muito interessante, de mudar do infanto-juvenil pra teatro infantil e jovem. Eu tô fazendo agora questão de contemplar o jovem, o teatro jovem, com outras dramaturgias, com outras didáticas, outras linguagens, pra que ele não fique nunca com aquela dúvida: “é infanto-juvenil? Mas é infantil, é jovem?”. Quando bate essa dúvida, a pessoa sempre acha que não é pra ela. Ainda mais essa faixa etária entre os 10 e os 13 anos, muitas vezes eles não sabem pra onde vão! Não é verdade? Eu fiz questão de mudar porque também a população, digamos assim, evoluiu! A televisão avançou, o cinema avançou! E o teatro também tem que acompanhar.
E as demandas do público também são outras. Cabe a mim, como curadora, abrir as portas pra essas novas demandas. O teatro não pode ficar para trás. Eu trouxe, por exemplo, A princesa e a costureira, que foi um espetáculo infantil com a linguagem LGBTQIA+. Foi uma ruptura, abri pra outro campo. Eles fazem sucesso com esse espetáculo até hoje, ganhou prêmios e tudo!
Então eu tenho que estar atenta ao que acontece no mundo, no país, e o que é importante estar sendo levado pro jovem, pra criança, trazer sentimento de pertencimento. Mas um pertencimento com muita educação, com muita liberdade, com muito diálogo.
A minha nova ideia é formar, uma vez por mês, um tipo de mesa onde eu possa trabalhar com linguagens ligadas ao teatro ou não, gravar, e isso ir pra alguma rede, pro público saber que tem. Porque quando perde a continuidade a gente perde o público. Eu queria ter mais tempo, e me dedicar mais, assim como eu fiz com o projeto Este mundo é meu, que é uma outra coisa que eu fiz que foi bem legal.
O Este mundo é meu, foi um projeto que eu queria falar também. Surgiu assim, de eu ler coisas que estavam acontecendo na época, várias coisas que aconteciam com criança, com adolescente, com famílias, e que continuam acontecendo. Eu queria uma coisa que mostrasse outro lado pras crianças em termos de diversidade, principalmente por se tratar do Centro Cultural São Paulo. Teve apresentações de bailarinas cegas da Fernanda Bianchini, de índiozinhos, de meninos da FEBEM, da orquestra da prefeitura… E não era pra ser curioso pras crianças da cidade, sabe? A programação era na verdade uma integração, tipo: “você sabe que isso existe? São crianças como você…”. Era uma época muito profícua, que a gente tinha ônibus, tinha lanche. Eu trouxe crianças de tudo quanto é lado da cidade pra conhecer esse espaço. E fui muito feliz nesse projeto.
Mas isso foi há uns 8, 10 anos atrás. Hoje no Centro Cultural a gente luta com as dificuldades de manter o teatro infantil e o teatro jovem. Então às vezes é desesperador, isso eu tenho que confessar. Porque eu preciso que saibam que aqui tem o teatro infantil e jovem. Não adianta eu abrir portas se o público não vier…
Qual a importância você dá para o que faz aqui, pessoalmente e para o público?
Da década de 70 pra agora a vida deu uma alteração extraordinária. As coisas são muito rápidas e altamente caras, tudo mudou, se renovou. E o teatro infantil também está precisando de uma renovação, pra acompanhar os tempos de agora. Fazendo a minha curadoria eu ajudo o teatro infantil e jovem a dar essa renovada. Mas não é fácil, não. Quem lida com jovem e com criança precisa gostar porque não tem louros: tem que se dedicar, tem que lutar, porque se não você perde espaço. A criança e o jovem têm seus percalços particulares, e isso não tem muito espaço na área cultural.
Aqui no CCSP eu busco dar preciosidade pro teatro dos pequenos. Espetáculo comercial, por exemplo, é aquele que tem uma linguagem pra vender coisas, mais pra agradar, esse eu não trago nem que me mandem embora. Eu trabalho com a dramaturgia de verdade, com atores que tragam uma história que seja realmente pra criança e pro jovem.
Alguns anos atrás você ganhou um prêmio da Unicef por seu trabalho com o teatro infantil. O que leva alguém como você, que tendo ganhado um prêmio dessa relevância, a continuar aqui desenvolvendo esse trabalho de formiguinha?
Sobre o prêmio, é isso que eu falei pra vocês! Essa é a minha vida, você entendeu? Não sei, se eu tivesse casado, tivesse filhos, se seria diferente. Talvez. Mas é a dedicação mesmo, total e absoluta, por uma coisa que eu acredito e que antes de mim vieram outras pessoas fazendo.
Eu gosto muito de ir além. Sempre no teatro, que é onde eu me encontro… E o Centro Cultural acaba sendo a minha casa do experimento! Por exemplo: ano passado eu fiz um trabalho pro Itaú, dentro do Terças Crespas. Era uma mulher que falava de outras mulheres… Enfim: senti que dava pra dar continuidade a esse projeto, então dei uma encorpada nele e apresentei ali na sala Jardel Filho. É aqui, no meu serviço, que eu tenho essa liberdade. Eu sou respeitada e tenho confiança pra experimentar e trazer espetáculos. Nunca ninguém disse “não, não faça”.
Para finalizar, por que estar aqui e sempre voltar?
O que me faz voltar não é o meu trabalho. Eu tenho um trabalho, mas defendo uma área. É a defesa dessa área que me faz voltar, porque eu não sei se ela será mantida do mesmo jeito depois que eu me aposentar. O Centro Cultural não pode ficar sem o teatro infantil e nem sem o teatro jovem, então eu sigo lutando por essas dramaturgias tão necessárias. Quem sabe eu encontro uma pessoa pra ficar no meu lugar, daí eu saio! Mas com ciúme, falando assim: “ó, qualquer coisa cê me liga, hein? Liga porque eu tô de olho!” Quem sabe?
Entrevista: Márcia Dutra, João Vitor Guimarães e Lara Tannus
Transcrição e edição: Isabela Pretti Nogueira
Revisão: Paulo Vinício de Brito
Fotografia: João Silva