Quem fez, quem faz é uma seção do site do CCSP que procura colocar luz sobre trabalhos fundamentais para o funcionamento da instituição, mas que, por diversas razões, permanecem “invisíveis” ao público. Parte da equipe do CCSP desde março de 2019, na recepção, Emery Khoury é a primeira funcionária transexual negra a trabalhar no Centro Cultural. Leia a seguir a entrevista completa com ela:
Como foi a sua entrada no CCSP?
Eu entrei faz duas semanas, por meio da empresa Gocil. Eu já estava esperando a oportunidade de trabalhar na Gocil, porque agora contratam pensando na inclusão das pessoas mais diversas. Fui uma das primeiras contratadas e já estava na espera há um ano mais ou menos.
Conte um pouco da sua trajetória de vida.
Eu morei com os meus pais até os seis anos, aqui em São Paulo. Primeiro minha mãe foi embora do Brasil, quando eu tinha dois anos, e me deixou com o meu pai. Morei até os seis anos com ele. Como sofri maus-tratos, a justiça pegou minha guarda e me deixou no orfanato com uma tia minha, que era dona do lugar. Enquanto eu morava lá, fiz cursos e depois morei fora. Passei um ano e dois meses trabalhando na Noruega, fiz curso de babá, dos 19 aos 20 anos. Quando voltei, fui estudar Medicina na Argentina e fiquei lá um pouco mais de um ano. Porém, como eu não tinha mais como arcar com os gastos, optei por voltar para o Brasil para trabalhar e conseguir recursos aqui, guardar dinheiro e depois voltar.
Quais os caminhos que você percorreu em termos de estudo e formação? Você tem alguma formação concluída?
Eu concluí o ensino médio, entrei na Faculdade de Direito e parei no segundo semestre, depois comecei a fazer o cursinho pré-vestibular para Medicina. Então, fiz curso técnico de Administração, um técnico de enfermagem, e um para me tornar auxiliar veterinário, mas este não terminei. Alguns desses cursos eu estava fazendo antes de ir para a Noruega. Aí interrompi. Quando voltei, terminei o de Administração. Como eu havia conseguido uma bolsa, deveria concluir em três meses. E, para isso, eu ficava lá três horas por dia durante todo o mês. Era bem cansativo. Eu gosto de Administração, acho fundamental tanto para lidar com os lados profissional e financeiro quanto para o pessoal.
Que importância você dá para o que faz aqui, pessoalmente e para o público?
Acho que faço diferença porque atendo [os funcionários e o público em geral] de um jeito diferenciado. Como aqui vem um público diverso, é importante todo mundo se sentir confortável e mais confiante. Isso é muito bom e fico feliz em fazer parte disso. Os funcionários passam, eu falo bom dia, mesmo que alguns não respondam. Às vezes eu fico lá na porta e nem todo mundo fala comigo, e, mesmo assim, eu faço questão de cumprimentar e perguntar como vai o dia a dia de cada um.
Você já sofreu algum tipo de preconceito e/ou desconforto aqui no espaço de trabalho pelo fato de ser negra e trans?
No geral, algumas pessoas que me tratam por “ele”, pedem desculpas, mas outras falam de propósito. Aqui nunca aconteceu isso, as pessoas que erraram sempre pediram desculpas, não aconteceu nada de desagradável. Aqui é um espaço que acolhe um público diverso, e então as pessoas, graças a Deus, conseguem ter esse entendimento. Ao contrário das pessoas na rua. Já estive em outros ambientes de trabalho onde sofri com isso, e já tive até que pedir demissão. Pedi demissão por não estar mais aguentando a pressão da minha coordenadora me chamando sempre de “ele”. E ela fazia de propósito.
Conte acerca da sua trajetória profissional. Faça um resumo de tudo o que você fez ao longo do tempo.
Com 11 anos eu já trabalhava entregando anúncios de venda de apartamento e conseguia mais ou menos uns 40 reais por final de semana. Aos 13, fiz um curso de panificação, até entrar no meu primeiro emprego de verdade. Eu era de auxiliar de panificação em uma padaria que doava pães para o orfanato. Então era isso. Dava uma fugida do orfanato para ganhar algum dinheiro e aí eu chegava ao orfanato e conseguia comprar o lanche da escola. Aí me perguntavam: “como você tem dinheiro?”. Teve um dia que a minha tia passou na avenida e me viu panfletando. Ela disse que ia denunciar a empresa para a qual eu estava trabalhando porque eu era muito nova para fazer isso.
Na padaria, eu ganhava mais de um salário [mínimo] e com ele eu podia ajudar o orfanato. Eu comprava meus próprios produtos de higiene e não dependia dos meus padrinhos.
Eu fiz o curso de Administração até os 18 anos e, terminado esse curso, entrei na faculdade de Direito. Consegui a bolsa para essa graduação por meio de um programa chamado EDUCAFRO, que tem aqui na Sé. Morei na Casa 1, que é um projeto que acolhe LGBTs em situação de rua, e foi graças a essa participação que tive a oportunidade de trabalhar aqui. Como não tive quase nenhum auxílio familiar, eu tive que fazer tudo sozinha para conseguir ter um lugar só meu.
Conte um pouco sobre a Casa 1, que lhe socorreu em um momento difícil.
Eu conheci o projeto da Casa 1 por intermédio do EDUCAFRO, onde me falaram que a Casa acolhia pessoas que enfrentavam problemas de moradia. Para morar na Casa 1 tive que passar por uma entrevista difícil porque lá tem só cerca de 20 vagas. Eles também fazem doações, principalmente de roupas, para transexuais e travestis em situação de rua. Fui fazer a entrevista, contei minha vida, a minha história, contei da faculdade, da minha viagem, contei da minha situação. Então eles acharam adequado me abrigar lá durante esse tempo para que eu não perdesse as oportunidades já conquistadas. Algumas pessoas abrigadas lá acabam abandonando a faculdade, o emprego, etc., de qualquer modo, indo para a prostituição, roubar ou usar drogas. Outros têm problemas psicológicos e, para atendê-los, a Casa 1 tem psicólogos, psiquiatras e agentes de saúde que também ajudam lá.
Eu entrei na Casa 1 no final de dezembro de 2018. Participei do Natal e do Ano Novo lá, inclusive ajudando a montar a ceia. Ajudei a fazer as comidas para a festa, junto com muitas pessoas.
Também trabalho de hostess no Bar dos Arcos, no Theatro Municipal, mas não dá para ir todos os dias porque, de vez em quando, fico aqui [no CCSP] até 18h30 e, até chegar em casa, demora muito. Tenho que estar lá [no bar] às 20h e trabalho lá até 2h ou às vezes até às 4h. Então fica complicado e muito corrido para mim.
Procuro ter um lugar só meu para morar, porque agora moro com 20 pessoas, e isso não é fácil e nunca vai ser, já que eu morei no orfanato com 40. Lá até tinha uma estrutura boa, e a Noruega começou a ajudar também.
Morar na Casa 1 é um privilégio, porque tem vários projetos, como aulas de inglês e espanhol, e isso não é só para o público LGBT, mas também para crianças que moram no entorno. Às vezes tem 30/40 crianças lá, e elas respeitam o nosso espaço. E são crianças que moram em casas e prédios invadidos. E aí, enquanto as famílias trabalham, as crianças ficam no galpão, para não ficarem na rua. Tem também aulas de costura, de pintura, e as crianças são como se já fossem de casa.
A gente ajuda e é ajudado. Por exemplo, quando precisamos arrecadar dinheiro e eu fui voluntária. Houve um evento de teatro para arrecadar dinheiro e eu também fui voluntária. É bom ser voluntária do lugar em que você mora, porque você está ajudando quem está te ajudando. Agora o meu projeto é morar sozinha e, na sequência, voltar para Argentina estudar Medicina.
Para finalizar, por que estar aqui e sempre voltar?
Porque é um ambiente muito agradável. Se eu soubesse que esse lugar maravilhoso existe e até mesmo se eu não trabalhasse aqui, eu viria para cá todos os dias. Antes eu ia todos os dias ao SESC Bom Retiro, e também àquele perto da Galeria do Rock [SESC 24 de Maio].
Eu passava sempre por aqui, mas nunca tinha entrado para conhecer. Agora eu sei que é um lugar muito agradável e que tem várias coisas para se ver: as exposições, o cinema… Tento aproveitar ao máximo esse lugar, falar com todo mundo, ver uns filmes, às vezes pegar um livro na biblioteca…
Só gostaria de acrescentar que hoje em dia é difícil ser trans e mostrar quem você é para a sociedade. Isso não foi nenhum pouco fácil para mim. Mas, como eu já vinha de uma história difícil, então, me assumir trans não foi diferente.
As pessoas falam: “ah, aquele lá virou trans”, mas ninguém “vira” trans. Não é uma opção. A pessoa nasce transexual e vai se descobrindo ao longo do tempo. Quem é trans deveria ser mais resistente e ter mais força, porque eu também sei que não é fácil. Mas é possível. Hoje já temos trans que são advogadas, juízas, delegadas, médicas, etc.
Por exemplo, eu quero – quero não, eu vou! – ser médica! E quero fazer parte da história, como outras deveriam fazer. Como eu disse, não podemos baixar a guarda para os preconceitos: político, religioso, de gênero… Temos mais é que nos unirmos: transexuais, LGBTs, héteros, binários, não binários, porque juntos conseguimos derrubar esses preconceitos. Hoje em dia o ser humano está um pouco mais aberto. Tem algumas pessoas que, sim, ainda têm preconceito. Mas, por exemplo, eu participo de uma igreja chamada Metodista, em que as pessoas são, sim, tradicionais, com idades entre 60 e 70 anos, e, mesmo assim, me tratam tão bem! Isso vai de cada pessoa.
Algumas pessoas não querem se dedicar a saber o que se passa a sua volta. Elas só querem expor o que elas pensam, não o que elas sabem. O que é ser trans? Ninguém para e me pergunta. Ninguém abre um livro. Ninguém procura na internet. A pessoa tem a mente fechada e nunca se propõe a saber.
Eu sofri preconceito dos meus melhores amigos e fui ajudado por pessoas que eu nunca imaginei que me ajudariam. O preconceito, às vezes, não está na face da pessoa. Muitas pessoas me ajudaram ao longo desse tempo. Além do preconceito, você tem que enfrentar vários problemas psicológicos… Vi pessoas que moraram comigo na Casa 1 que se mataram recentemente… O preconceito não é fácil.
Entrevista: Márcia Dutra, João Vitor Guimarães e Lara Costa
Revisão: Paulo Vinício de Brito
Fotografia: João Silva