Música na era digital
Ouvir música, hábito que já foi restrito à Igreja, à nobreza ou à elite em outros tempos, tornou-se no mínimo corriqueiro à maior parte da população. De acordo com pesquisa realizada pelo IBGE em abril de 2018, 69% dos brasileiros acessam a internet via celular. Com isso, a música na web, do clássico romantismo do polonês Chopin aos funks cariocas lançados constantemente pela indústria fonográfica do eixo Rio-São Paulo, está disponível para quem, dentro da referida porcentagem, quiser ouvir no lugar e no momento de sua preferência.
Depois dos concertos ao vivo, do rádio, do Long Play (LP), da fita cassete, do Video Home System (VHS), do Compact Disc (CD) e do Digital Video Disc (DVD), é a vez do serviço de streaming. Nesta tecnologia, informações multimídia são distribuídas através de sistemas de redes de computadores, entre eles a internet. O termo streaming, emprestado do inglês, significa “fluxo de dados e conteúdos”, destacando a velocidade e a intensidade com que tais dados são inseridos e transmitidos no sistema.
Com a difusão do streaming, ouvir música torna-se uma das principais atividades quando se possui o acesso à internet. Uma vez que o consumo de streaming é acessível a qualquer momento, dependendo exclusivamente da vontade do ouvinte, escutar música passa a ser um exercício cada vez mais banal, frequente e solitário.
Sim, ainda ouve-se rádio, concertos e shows são cada vez mais valorizados (financeiramente mesmo) e as tecnologias hoje obsoletas como o CD e o DVD não desapareceram por completo. No entanto, é inegável que plataformas como o YouTube, o Spotify e o Deezer se popularizaram muito nos últimos anos, chegando a criar tendências e moldar o estilo musical do consumidor, levando em conta o armazenamento de dados pessoais: o que acessamos fica registrado no sistema e não pode ser retirado, esquecido ou ignorado tão facilmente.
O conceito de streaming se estende ainda em relação à disponibilização de séries, filmes, livros e outras obras cuja aquisição era limitada ou condicionada por outros fatores. Assistir a séries que antes se restringiam a canais de televisão a cabo, por exemplo, tornou-se mais fácil e acessível, encaminhando as mídias mais tradicionais a um processo de remodelação e adaptação às novas demandas.
Contudo, diferentemente de outras linguagens artísticas, mais academicizadas e associadas a momentos apenas introspectivos, a música está presente em momentos de grandes confraternizações, das mais efusivas e eufóricas como o carnaval, até momentos de reflexão e solidão, passando por concertos de música erudita e cantoras que popularizaram a “sofrência”.
A música tida hoje como popular é uma das linguagens com menor grau de exigência de concentração e, também devido a isto, a de mais simples disseminação. É comum ouvir o termo “música chiclete” (na maior parte das vezes até como algo pejorativo) para indicar um tipo de canção repetitiva que chega a influenciar conexões neuronais, atraindo o ouvinte para a atenção e dispersando o foco de atividades alheias àquela música.
Por mais que algumas canções sejam escutadas a fim de diversão e entretenimento, existem aquelas específicas que ultrapassam esta condição – independentemente de terem uma estrutura mais simples ou complexa, alcançando um grau de espelhamento e identificação com o ouvinte, seja pela própria letra, arranjo, melodia ou ritmo. Com isso, a escuta coletiva de uma música pode aproximar-se da exposição de nós mesmos, daquilo que sentimos, pensamos e valorizamos – ou daquilo a que fomos conduzidos a sentir, pensar e valorizar – e de como escolhemos expressar tais elementos.
Não é à toa que este cenário aparece em um período em que vivemos vidas individualizadas. Embora cada vez mais pessoas tenham acesso às mais diversas atividades, é inegável a maior procura de residências para se viver sozinho, com os próprios aparelhos tecnológicos, a própria comida, a própria rotina e a própria arte –ajustadas de acordo com as recomendações feitas pelos inúmeros aplicativos e dispositivos, que armazenam dados cujas informações nos revelam mais do que aquilo que acreditamos saber sobre nós mesmos.
Música e psicanálise
A arte nos convida a sair da zona de conforto e procurar alternativas para compreendermos nossos pensamentos e atitudes por meio de reflexões e espelhamentos. Com base nessas ideias, a Discoteca Oneyda Alvarenga e a Supervisão de Ação Cultural do CCSP proporcionam momentos de escutas e debates na série Sou som: a música que toca em mim – em que os participantes, frequentadores dos serviços de saúde mental do Hospital do Servidor Público Municipal (HSPM) e o público em geral, selecionam algumas canções para serem ouvidas e compartilhadas em grupo –, fazendo com que a música seja a principal ferramenta de conhecimento, entretenimento e conexão.
Após algumas sessões de escuta, o projeto se encaminha para a confecção de artes de capa de um CD na Folhetaria do CCSP e, por fim, à gravação das canções apresentadas juntamente com suas narrativas no Estúdio de Rádio do CCSP.
Com o acompanhamento da psicanalista e psicóloga Thaís Rodrigues Silva, as rodas de escuta oferecem uma experiência sonora momentânea, indagando aos ouvintes que nunca entraram em contato com determinada música quais sentimentos aquela canção desperta ou apresentando músicas já conhecidas e suas possibilidades de interpretação.
A primeira fase da atividade em questão se assemelha à musicoterapia – composta por rodas de escuta e compartilhamento de repertórios musicais afetivos –, pois o encontro apresenta “uma qualidade terapêutica àqueles que se encontram em grande sofrimento mental”, de acordo com Thaís. No entanto, o projeto vai além de uma técnica com finalidades de cura, avaliação e diagnóstico, já que é caracterizado “pela socialização e pelo pertencimento de seus membros – pertencimento dado pela experiência estética, fruto da percepção dos sentidos, vivida no processo artístico”.
Assim como toda linguagem e todo discurso, o impacto que determinada obra causa em cada um de nós é singular. Ao entrarmos em contato com qualquer tipo de texto – linguístico, visual, sonoro ou multimídia –, nosso cérebro recebe estímulos que podem alterar nossos processos cognitivos e encaminhar nossa mente e nosso corpo para outro tipo de pensamento e ação. No caso da música, por exemplo, os estímulos enviados para nosso sistema nervoso são contrários ao estresse e ao mau humor e melhoram a criatividade e a imaginação.
Para Thaís, “a música é uma relação sistêmica, um sistema de relações transcendentes, em que o impulso vibratório dá a característica a uma voz ou a uma melodia. Dessa maneira, o som depende de uma experiência interior, pressupõe um sujeito ouvinte que torna consciente para si o estímulo vibratório. O som depende do ouvinte para transformar esse fenômeno acústico em uma experiência individual, em uma lembrança ou em um processo criativo”.
A arte que nos rodeia, portanto, serve como espelhamento dos nossos próprios costumes, ainda que eles sejam negados ou recusados em algumas ocasiões, e também como uma forma de estabelecer diálogos com outras opiniões, considerações e valores que não os nossos. Nós somos o que ouvimos.
O acervo e o público
Os idealizadores do projeto Sou som: a música que toca em mim, Djayson Marcio e Marta Fonterrada, ainda não haviam planejado a terceira edição da oficina, que veio à tona principalmente por sugestão da psicanalista e da nova turma. “Queríamos desenvolver uma atividade e, ao mesmo tempo, utilizar o acervo, fazendo um ponto de ligação dos materiais que as pessoas vão escutar com a própria vida delas, e como aquilo seria utilizado na dinâmica em grupo”, contam Djayson e Marta.
Em resumo, a dinâmica ocorre em uma roda, em que as pessoas escolhem uma música do acervo, todos escutam e quem escolheu aquela canção se manifesta. O que uma pessoa fala é jogado na roda e, assim, outras trazem diferentes linhas de raciocínio, contam histórias, algum relato sobre o artista ou sobre a música.
O diferencial da proposta não fica exatamente por conta da realização das ações, mas em como elas são costuradas e mediadas por um tipo de reflexão que não estamos acostumados a fazer, partindo da música, de trilhas sonoras à MPB, para desenvolver coletivamente pensamentos e narrativas inerentes à trajetória de cada pessoa, levando em consideração a relação do sujeito com o tempo e com modos de expressar sua subjetividade por meio da arte.
A balança se equilibra, desta forma, na medida em que o projeto promove uma atitude atemporal como ouvir música, de forma diferente do que é comum hoje: uma forma moderna, porque a canção é selecionada prévia e individualmente, além de discutida em conexão com uma perspectiva psicanalítica; e antiquada, porque escutada em grupo e em uma discoteca.
O acervo da Discoteca Oneyda Alvarenga inclui inúmeros registros musicais nacionais e estrangeiros que perpassam diversos estilos de música, constituindo um conjunto eclético e plural em uma instituição que, ainda que não se caracterize como um museu por excelência, conserva materiais importantes para o desenvolvimento de uma sociedade e a construção e preservação da memória.
Paralelamente, o desinteresse de boa parte da população por assuntos tidos como arcaicos e obsoletos é notável. A ansiedade e a expectativa pelo novo, de tão altas e valorizadas, criam um desequilíbrio em comparação com o que já “passou” – e, dentro deste pensamento em que o imediato é prioridade, aquilo que já foi novidade um dia (e, portanto, não é mais) torna-se retrógrado, ainda que não seja.
A ideia de um lugar como uma discoteca espanta diversas pessoas, especialmente as mais jovens, cujo interesse pelo novo é compreensivelmente maior, na medida em que entrar em contato com o que retrata o momento presente, ou seja, com aquilo que outras pessoas e grandes grupos irão ouvir, é uma forma de pertencer a um contexto, uma comunidade e, com isso, se sentir completo.
Entrar em contato com a memória, incluindo seus aspectos individuais e transgeracionais, envolve uma busca pela incompletude (carência, para Freud) humana, que nos cerca do nascimento até a morte, influenciando nossos desejos e comportamentos. A questão está em como administrar esta incompletude e na possibilidade de fazer com que a arte – lançada ontem ou em 1850 – nos ajude a lidar com isso.
Texto: João Vitor Guimarães
Entrevistas: João Vitor Guimarães e Vinícius Máximo
Colaboração: Djayson Marcio e Marta Fonterrada (Supervisão de Ação Cultural) e Thaís Rodrigues Silva (psicanalista e psicóloga)
Ilustração: Beatriz Simões
Publicado em: 22 de outubro de 2018