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Entrevistas

Programa de Exposições 2018: Carla Lombardo e Ж

Uma das duplas selecionadas pelo Programa de Exposições 2018, Carla Lombardo e Ж apresentam na II Mostra o trabalho A União do Povo, em que exploram e ampliam a noção de “comum”, a partir de materiais de arquivo relacionados a construções populares do Nordeste brasileiro nos anos 1970/1980. Confira abaixo as reflexões da dupla encaminhadas por e-mail. A pedido dos artistas, foram mantidas as particularidades de terminologia, formatação e grafia das respostas.

A União do Povo parte de um arquivo – associado comumente a algo estático – para vislumbrar e propor novas formas de vida e de convívio, a partir de experiências e registros de construções populares do Nordeste brasileiro nos anos 1970/1980. Como esse movimento se materializa no espaço expositivo? Em que medida vocês veem a valorização da memória como condição indispensável para a existência no presente e a projeção do futuro?

O arquivo como história, a história a contrapelo (W.Benjamin). Aby Warburg, a noção de arquivo como Mnemosyne. Sua lição irrefutável do estático com algo extático, montagem. O passado como ente dinâmico, o tempo não linear. Illa (Aimara) “(…) é algo que já é sem ser o que já é, mas que já está sendo o que ainda não é. Ela ainda tem que ser criada para ser algo, mas já esta sendo”, como propõe o educador Mario R. Ibañez.

Um arquivo em espiral, conciliado com o tempo em espiral. A valorização da memória tem sentido se ocorre com uma crítica que a acompanhe. Não tem potência se for uma coisa saudosista, bucólico-estática. Serve só se for algo político-ético-estético.

Essa crítica que permite a ativação da memória, que habilita essa não linearidade e cria um chão no presente para que esta produza reverberações e outras germinações (Suely Rolnik). A memória pode, sim, ser uma projeção (futuro), mas não pode ser acrítica.

Também podemos pensar olhando -A União do Povo- no arquivo digital. No trabalho ele se materializa nos QRs que compõe, junto com as fotos das arquiteturas vernaculares e mobiliários, o Mnemosyne. Aqui aparece uma outra noção ligada às propostas do Vlém Flusser para pensar a imagem-técnica como possível produtora de verdade (conhecimento), beleza (estética) e comportamentos (política). Além de politizar os QR-fazendo um desvio, détournement-, propomos em simultâneo a atualização do corpo virtual, eletrônico, dissociado da nossa vida dívidual (de perfis de redes sociais, mas não só) em uma sincronização com o corpo físico, presente no espaço do CCSP. A associação/composição das temporalidades do real acopladas ao “virtual”.

A dança é mais um elemento mobilizado para a ativação do trabalho. De que modo o público poderá acompanhar e participar das coreografias previstas? Com sua pergunta lembramos do “se não posso dançar, não é minha revolução”, da Emma Goldman…

Os quatro movimentos que compõem a dança – “tradução intersemiótica” das uniões da arquitetura/mobiliário populares – estão disponíveis no contra-espaço que criamos no CCSP. A dança aqui é entendida num sentido expandido, já que o que propomos é um espaço – outro – para performar a arquitetura do Centro Cultural São Paulo. Esses quatro movimentos, que são também um vocabulário político (Apoiadeira-Todos por Um; Sustenta e passa – o dentro é o fora; Suporta a gira; Diferença: Potência) acessível através dos códigos QR existentes no Mnemosyne. Outra opção é ler as instruções impressas em folhas A4.

Há na proposta também uma dança no “baile dos artistas” ; ). Reposicionar socialmente a prática artística, aproximá-la da cultura para expandi-la e sair da posição moderna de refletir sobre as condições de produção e passar a ser produtor de condições (no caso a dança, outro uso do Piso Caio Graco do CCSP, a chamada de dança, etc). Nessa chave o contra-espaço é o comum – adiantando um pouco a pergunta seguinte – no qual o público pode tentar fazer seus próprios movimentos a partir das trilhas compostas para o trabalho. O intuito da Chamada Aberta de Dança foi esse, que cada comunidade autônoma temporária arriscasse uma proposta de movimentos e propusesse sua/uma/a: “união do povo”. Ficamos muito contentes quando vimos a proposta para a chamada da Coletiva Corpas Zoom, que, a partir da comunhão dos elementos pedra, pau e terra, criaram seu repertório de movimentos.

No trabalho tomamos várias referências de danças, que só se dão em algum tipo de comunidade temporária, como, por exemplo, a dança circular Sardana da Catalunha, onde todos dançam juntos, de mãos dadas, formando um grande círculo. Algo como uma ciranda… outra são as baianas e o dervixes que giram sobre o próprio eixo ao mesmo tempo em que todxs giram.

A noção do “comum” ocupa centralidade no trabalho apresentado na II Mostra do Programa de Exposições 2018. Como vocês a definiriam?
Comum escreveríamos em itálica, talvez. Com essa noção pensamos com o T.Negri, Agambem, Achille Mbembe que elaboram – de modos dissonantes por vezes – sobre isso… no Mbembe, por exemplo, comum implica numa reinvenção da comunidade.

Esse desejo está no trabalho – esperamos. Sim, está nos Secundas, nas coletivAs e nas Corpas Zoom (participantes da Chamada Aberta de Dança). No trabalho -A União do Povo- o comum está presente na inteligência do povo para resolver… pra se situar no mundo, encontrar suas próprias palavras, suas referências… quais sejam… nos mais amplos e diversos sistemas vivos. As fotos do Arquivo Neide Mota são epítomes disso, desses agenciamentos humanos e não humanos, dessas hibridações. Desta forma de estar ch’ iki ou chi’xi, (Aimara) misturado, impura ; )

Um banco-falante, um mnemosyne, espadas de São Jorge, associados, em redes num mesmo contra-espaço. Eles sugerem uma saída ao desenvolvimentismo do Brasil e do Mundo, na chave da Neide Mota, Lina Bo Bardi, ou mesmo do Oswald – “bárbaros tecnizados” -, que tão bem entendeu a crítica e pesquisadora Fabricia Jordão, que escreveu sobre isso no catálogo da presente Mostra.

Esse comum que de certo jeito acontece no cotidiano, seja para resolver a união (desde um móvel até uma comunidade), na inteligência do povo para viver, em suas estratégias.

Essa potência do popular, que aqui não significa ser pobre. O que seria folclorizar a pobreza, que tem que ser e pode ser superada. Estamos falando numa chave que segue a última do E.Viveiros de Castro, “Seja índio, não seja pobre”, em diálogo com o “Seja Marginal, seja Herói”, do Hélio Oiticica.

Essa ideia de indígena não é saudosista, primitivista, se trata mais de uma “figuração do futuro” do que uma sobrevivência do passado (Peter P.Pelbart). Trata-se de sua dimensão autonomista, auto-organizada de um “anarquismo ontológico”, como proposto por nós em um santinho eleitoral – DEVOTO – certa vez…

Novos povoamentos?
Seguindo ainda uma outra autora, a boliviana Silvia Rivera Cusicansqui, nos habilita a pensar a comunidade autônoma temporária… num sentido ainda diferente da TAZ do Hakim Bey… um temporário irreversível, aquele que nos faz perguntar; emerge comunidade num levante? uma comunidade tem que ter princípios? Finalidades?

O comum – citado acima – implica essa reinvenção da comunidade e do que entendemos por ela.

Talvez seja também um estado do corpo (vibrátil) algo bem perto do que o Negri chamou de hilaritas,

(…) “alegria integral que um corpo é capaz de alcançar quando se encontra em plena posse de sua potência de afetar e ser afetado” .

Sabemos que não há separação entre corpo e sentido, viver com o corpo, a fala e a mente alinhados pode ser também uma forma do comum. Dizer não a fragmentação… essa que o semiocapitalismo opera e gesta, recuperando micro fragmentos do nosso tempo de vida, da nossa linguagem, gestos e da energia vital para gerar valor. É nele que a linguagem, entendida de modo amplo com o verbal e o não verbal (gestos, roupas, pele) deixam de gerar sentido e passam a produzir e acumular valor (BIFO).

Então, voltando um pouco pra Silvia, ela pensa o comum como “algo que no encierra la persona singular”, o que nos leva ao desejo do “povo que falta” do “povo por vir”. A chave andina em particular – poderíamos sugerir outras com a noção ampla de ameríndios – do buen vivir é algo que nos soa como um possível, ainda que improvável, mas que pode se tornar necessário. O buen vivir seria o contrário do tão praticado “dar-se bem”, como bem disse o E. Viveiros de Castro. Criamos tudo isso, enquanto há tempo… é um chamado à vida ativa, conciliada consigo mesma, em inter-relação com todos os seres. A vida impessoal fora e através do sujeito… a vida pura.

 

Entrevista: Marcia Dutra e Vinícius Máximo
Foto: Enrico Porro

 

*Publicado em 18 de dezembro de 2018

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