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Entrevistas
Programa de Exposições 2017: Raphael Fonseca
Formada em Poéticas Visuais pela ECA-USP e professora de litografia na FAAP, a artista plástica Andrea Tavares apresenta seu projeto Fantasmas no Piso Caio Graco, no Centro Cultural São Paulo, como parte da II Mostra do Programa de Exposições 2017. Com a proposta de investigar a memória compartilhada enquanto matéria, Tavares cria, a partir de seu projeto Cenas Íntimas e Habitações, da série Arquivos de O., uma coleção de imagens em andamento desde os anos 80. São duas pastas AZ contendo cerca de 120 objetos cada, entre livros, gravuras, desenhos, fotografias e pinturas, embaladas em plástico e dispostas nas paredes formando três painéis.
Além da série, Andrea expõe cerca de 60 objetos feitos a partir das páginas da biografia de João Calvino, escrita por Stefen Zweig, Uma consciência contra a violência. Se o livro propunha uma leitura padronizada, página a página, a artista faz, exatamente, o oposto: criando uma outra narrativa completa sobre um homem, propõe-se uma outra leitura para tornar cada folha individual, uma espécie de objeto autônomo. Para fazer isso, foi preciso descosturar o livro e estabelecer como regra que não poderiam ser feitas alterações que prejudicassem o texto.
Confira abaixo a entrevista realizada por e-mail com a artista.
Fale um pouco da sua trajetória e dos seus interesses de pesquisa artística.
Meu interesse é o desenho como processo de criação de imagens, criação de mundos possíveis. O desenho como percurso, atenção, seleção e tradução. O desenho como trânsito entre diferentes sujeitos. Concordo com Richard Serra quando ele diz que desenho é mais verbo do que substantivo. Para mim o desenho é formador de imagens e as imagens possuem sempre matéria, ainda que seja o próprio corpo que as produz ou recebe. Nesse sentido, se o corpo produz imagens, as imagens são parte integrante da memória de um sujeito e quando colocadas externamente a este corpo, ganham um corpo autônomo, capaz de gerar memórias que podem ser compartilhadas, significadas e possuídas por outros corpos. O desenho para mim é este trânsito.
Na minha pesquisa de doutorado, realizei o trabalho Curso de Desenho por Correspondência. Como em um curso a distância, criei seis fascículos, tanto os textos quantos os desenhos se apropriam da produção de outros autores em procedimentos que usam a cópia, a tradução e a traição do original para propor exercícios de pensamento para o leitor.
O arquivo Memórias de O. foi o princípio e levou a produção deste curso, que se debruçou bastante sobre a reflexão sobre o desenho na história da arte e, principalmente, sobre seu ensino. A tradição ocidental perpetua uma memória, eu queria e quero causar atrito nesta construção, trabalhar em suas fissuras.
Seu trabalho parece ter como elemento detonador a investigação sobre a relação entre memória e materialidade. De que modo esses conceitos se articulam em suas produções, especialmente nas que você apresenta no Programa de Exposições do CCSP?
O arquivo Memórias de O. é um acervo de imagens organizadas em seções. Uma coleção de imagens de Olho, um ente autônomo que aponta, recebe, produz imagens que eu organizo, o Olho também sou eu. O Olho é o aquilo que está instaurado no contato entre o particular e o individual. Nem sempre é possível diferenciar um do outro. O arquivo identifica imagens recorrentes, organiza a matéria destas imagens em seções. O que podemos ver é que uma mesma imagem pode habitar seções diferentes.
A partir de 2008 fui notando fantasmas, interesses persistentes na minha produção, e me debrucei sobre eles para criar as seções do arquivo Memórias de O. A dinâmica desta seleção, às vezes, é destrutiva, desenhos, pinturas, fotos se transformam em documentos, ganham o mesmo valor de um recorte de jornal ou de uma fotografia comprada em um sebo. Penso em todos como documentos, ausências, mas que ainda estando visíveis podem ganhar outros valores simbólicos. Fantasmas se ligam às imagens e a nós, nos possuem e nós os contaminamos de volta.
A apropriação de outras obras artísticas, como o livro de Stefen Zweig, Uma consciência contra a violência, é um procedimento presente em um dos trabalhos que você apresenta na mostra. Como esse procedimento se relaciona com a sua pesquisa sobre memória?
A memória não é um decalque, uma impressão de uma experiência, ela é construção. Ela se liga à linguagem e, assim, se dá no limite entre um sujeito e a sociedade. O movimento do desenho para mim torna aquilo que é individual passível de ser tomado por outros sujeitos, e aquilo que é coletivo, como uma obra de arte, pode pela mesma dinâmica se tornar pessoal. Há um percurso regido pelas traduções do desenho. Desenho entendido como apontei mais no início. No caso do trabalho Consciência, o livro foi desmontado, destruído em seu propósito original quando cada página ganhou uma forma distinta, se tornando um ser autônomo.
As páginas poderiam ser cortadas, coladas com durex e até receber imagens impressas, mas nada delas poderia ser descartado. Em sua matéria guardavam o texto original, a memória da narrativa biográfica sobre João Calvino, um dos teólogos envolvidos na Reforma Protestante. Mas cada um destes seres sozinhos não dá conta de nos trazer a narrativa completa, apenas existem sozinhos no mundo, sendo fragmentos de uma história que paira em diversos livros.
A vontade destes conjuntos de imagens é documentar memórias, imagens, articulando fragmentos sem hierarquias em narrativas contingentes. A forma de expor o arquivo não o revela completamente, talvez revele a impossibilidade de apreendê-lo todo. Assim, somos levados pelas circunstâncias a olhar a paisagem que cerca de 1200 imagens criam e buscar o que há ali.
Entrevista: Fernando Netto
Foto: Divulgação