Podcast “Sem Título”
Você já parou para pensar que toda interação humana é uma história em potencial? Ao mesmo tempo em que a vida acontece, grandes e pequenos acontecimentos surgem e se dissipam, constantemente. Pensando nisso, o novo podcast do Centro Cultural São Paulo, “Sem Título”, conta para o público histórias, anedotas, acontecimentos, fatos e curiosidades ainda não contados, que se passaram dentro da instituição, e que marcaram, de alguma forma, a vida de seus funcionários.
No primeiro episódio, conversamos com a Cláudia Bianchi, coordenadora do Laboratório de Conservação e Restauro do CCSP, que faz parte da Supervisão de Acervos.
Para ouvir o episódio na íntegra clique aqui e acesse o Spotify do CCSP. Também disponível no Google Podcasts e na Radio Public.
No YouTube do CCSP você confere a entrevista completa com Cláudia Bianchi.
Episódio #01 – O que foi e o que será
Notas e referências bibliográficas
1. Êxtase de Santa Teresa é uma das esculturas mais famosas do século XVII, feita pelo artista Gian Lorezno Bernini.
2. Pietà, de Michelangelo, é uma escultura feita em mármore, em 1499, e representa a Virgem Maria segurando Jesus, já sem vida, em seus braços.
3. O Santo Sudário de Turim é um pedaço de pano com o negativo da imagem de um homem, que muitos acreditam ser Jesus. Assim, o tecido seria uma espécie de mortalha onde este foi envolto após a crucificação.
4. Fotos da obra Ecco Narcisus, de Hudinilson Junior, 1991
5. Informações sobre a obra Ecco Narcisus, de Hudinilson Junior, 1991
6. Artigo sobre a exposição Ecco Narcisus, de Hudinilson Junior, em 2010, na Capela do Morumbi
7. Livro Metamorfoses, de Ovídio. Disponível para consulta e empréstimo na Biblioteca Sérgio Milliet do CCSP
8. Artigo “Hudinilson Jr.: o diário fragmentado de um corpo queer e desejante”, de Theo-Mario Coppola
9. HUDINILSON Jr.. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2023. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa21081/hudinilson-jr. Acesso em: 14 de junho de 2023. Verbete da Enciclopédia.
Transcrição completa do episódio
Abre aspas
Sem Título
Fecha aspas
Olá, eu sou a Tessi Ferreira, estagiária da Comunicação do CCSP, e gostaria de dar as boas vindas ao “Sem Título”, um podcast do Centro Cultural São Paulo que narra histórias, fatos e curiosidades ainda não contados, que se passaram dentro da instituição, e marcaram, de alguma forma, a vida de seus funcionários.
Antes de mais nada, gostaria de dizer que o podcast tem este nome mesmo, “Sem Título”. Como uma obra em que o artista não coloca o nome para encorajar uma experiência mais aberta e subjetiva por parte do espectador.
Hoje nós estamos no Laboratório de Conservação e Restauro, pertencente à Supervisão de Acervos do CCSP.
No dicionário, o verbo conservar significa guardar algo cuidadosamente para que não seja perdido ou danificado. Já o verbo restaurar, significa consertar um dano a uma obra de arte, ou outro objeto.
Em algum momento da história, em algum tempo e espaço, um primeiro acontecimento marcou a relação entre seres humanos. E também a relação desses seres humanos com objetos, lugares, sentimentos, e outros elementos do mundo que nos cerca. Desde então, nossa existência é envolta por pequenos e grandes acontecimentos que se transformam em histórias, em memórias e relatos.
Conservar uma história talvez signifique compartilhá-la. Restaurar uma história talvez signifique deixar que ela passe de novo por nossas veias de afeto, e tome outras formas, não porque está danificada, mas porque são organismos vivos, como nós, porque há uma transformação iminente em sua essência.
Para este episódio, eu tive o prazer de conversar com a Cláudia Bianchi, que está há mais de vinte anos na instituição e que vive diariamente a pulsação do Laboratório de Conservação e Restauro.
No piso que dá acesso à enorme Avenida 23 de Maio, no coração de São Paulo, um outro universo se desdobra, diferente do fluxo e do ritmo dos pisos superiores, o porão, como é carinhosamente chamado, guarda outras nuances deste espaço tão plural que é o CCSP. Andando a partir da entrada e seguindo em direção aos fundos, você se deparará com uma caixa branca de mais ou menos 500 m².
[Cláudia Bianchi] Acaba ficando que o Laboratório é o últimos dos últimos setores do Centro Cultural, fisicamente, porque ele tá no Piso 23 de Maio, lá no fundão, ninguém vai lá.
Subindo uma pequena rampa, você abrirá uma porta vermelha e finalmente, encontrará/estará no interior do Laboratório. Há muitas luzes, todas brancas e fortes. O espaço é amplo, limpo e a temperatura é relativamente baixa. Distribuídos sobre espaçosas mesas de dois, três metros, uma diversidade de instrumentos, materiais, e claro, obras de arte.
[Cláudia Bianchi] Então você entrando você tem uma surpresa, porque é tudo muito claro, tudo limpo, a gente tá acostumada com chão de cimento, e lá não, lá é tudo meio esterelisado, vamos dizer assim.
Ela também nos contou sobre como o espaço é organizado, dividido entre encadernação, acondicionamento, digitalização, sala de conservação e uma sala para montagem de exposições e banho de documentos. Lá dentro, a equipe se debruça sobre todo o acervo que compõe o CCSP, em um trabalho de muita destreza, cuidado, meticulosidade, e extremamente manual. Ali, diariamente estão as mãos que cortam, colam, secam, banham, separam, embrulham, armazenam, costuram…
Em dado momento da nossa conversa, comentei com a Cláudia sobre como acho interessante o caráter duradouro que uma obra carrega, do ponto de vista de sua repercussão, visto que elas permanecem no mundo, para além de seu artista criador. Ao mesmo tempo, as obras e os documentos também possuem um caráter material, que os colocam frente aos desafios do tempo, da decomposição, da poluição e da degradação. Aí, o trabalho tão essencial da conservação.
Então, a Cláudia me presenteou com a história deste episódio. Ela me contou sobre uma obra do artista brasileiro Hudinilson Júnior, chamada Ecco Narcisus, produzida na década de 90 e doada ao CCSP vinte e três anos depois.
A obra em questão é uma instalação artística. Vou abrir um parênteses para te explicar o que isso significa. São chamadas de instalações obras de arte que utilizam o espaço como elemento fundamental, geralmente são trabalhos em grandes formatos e envolvem interação com o público, que na maior parte das vezes pode transitar pela obra. Fecha parênteses.
Ecco Narcisus é composta por três painéis feitos a partir de várias tiras de bobinas de fax, que juntas, formam imagens completas, além de um espelho e uma pedra de granito.
[Cláudia Bianchi] E ele imprimiu várias tiras de fax, de bobinas de fax, e isso, juntando todas, faziam imagens. Bom, é uma instalação, são três ou quatro imagens, quer dizer, são muitas bobinas de fax, por exemplo, cada grupo tem dez bobinas, cada imagem de fax, então elas são muito compridas, tem mais de três metros.
Ou seja, com o passar do tempo, devido a sensibilidade das bobinas de fax à luz e à temperatura, qualquer impressão que tenha sido feita neste material, desaparece.
Depois da obra finalizada, e antes de ser doada ao Centro Cultural São Paulo, Hudinilson guardou todas as bobinas impressas em uma caixa, e colocou-as debaixo da cama.
[Cláudia Bianchi] Ele pegou essas bobinas, enrolou, botou numa caixa de papelão e enfiou debaixo da cama, a vida inteira.
Segundo a Cláudia, a intenção do artista era justamente que a impressão desaparecesse. O artista, ao contrário do que usualmente é feito, não estava preocupado em preservar a obra a qualquer custo, mas desejou que o tempo e os materiais seguissem o seu curso natural. Que as imagens existissem pelo tempo que fosse possível, restando apenas as bobinas, o granito e o espelho. Como uma espécie de metamorfose da obra. Ela não deixaria de existir por completo, mas existiria de outra forma.
Esta intenção de Hudinilson possui uma sutileza quase poética, como se o artista estivesse exercitando um desapego para com a obra. Como se ele desafiasse conceitos e ideias como a eternidade, o para sempre, o infinito, entendendo que a arte, assim como a vida, pode ser efêmera, mas ainda extremamente bela e poderosa, como as imagens impressas naquelas bobinas de fax.
E aqui, eu aproveito para fazer uma pequena digressão e apresentar Hudinilson a vocês. Mas calma, porque já já eu vou contar qual foi o desfecho das bobinas encaixotadas por tanto tempo.
Hudinilson Urbano Jr. foi um artista multimídia, nascido em São Paulo em 1957 e falecido em 2013, na mesma cidade. Assíduo frequentador do CCSP e grande referência para as artes visuais, especialmente entre os anos 70 e 80. Durante sua carreira, produziu obras e experimentos a partir de diferentes linguagens e materiais, como fotografia, xerografia, xilogravura e design gráfico. Hoje, muitos críticos e artistas contemporâneos reconhecem Hudinilson como uma figura transgressora à sua época, que provocava o público a partir da arte, da política e da estética.
Assim, sua trajetória foi composta por um assíduo ativismo social e político, experimentos com novas mídias, e um constante mergulho em sua própria subjetividade. Sobre este último aspecto, é relevante citar que Hudinilson tinha uma preocupação especial com a documentação de suas obras e outros elementos que perpassavam sua vida, como através de seus cadernos de referências, que hoje compõem o acervo de algumas galerias e instituições.
[Cláudia Bianchi] Aliás o Hudinilson era um artista, um catalagodor nato, porque ele colocava identificação em absolutamente todas as obras, então quando as obras vinham em doação pra gente já estava tudo especificado, era muito interessante.
Apenas graças aos seus infinitos registros e obras preservadas é que a vida e o percurso artístico de Hudinilson continuam fazendo sentido e inspirando novos artistas e ativistas no Brasil e em outros países.
Agora, cabe darmos mais detalhes sobre a obra em si e sobre as referências nas quais ela se apoia.
Ecco Narcisus foi idealizada por Hudinilson a partir de seu profundo interesse pelo mito grego de Narciso, amplamente conhecido e contado em muitas versões. Inclusive, o psicanalista e professor Pedro de Santi fala sobre como contar um mito fora de sua literalidade faz parte de ressignificar o mito, e isso tem a ver com a essência da mitologia, ela se transforma ao longo do tempo, assim como as histórias colhidas para este podcast, assim como as relações humanas.
Para quem não conhece, darei um breve apanhado do mito. Segundo Ovídio, um poeta romano que narra este e outros mitos em sua obra Metamorfoses, a mãe de Narciso, quando grávida, pede aos deuses um filho lindo e perfeito. Os deuses aceitam o seu pedido, com a condição de que Narciso nunca visse a própria imagem.
Narciso nasce, cresce e encanta a todos ao seu redor, até que certo dia, caminhando por um bosque, o estonteante rapaz é visto por uma ninfa chamada Eco, que imediatamente se apaixona perdidamente por ele, que por sua vez ignora o chamado da mesma. Eco já havia sido punida pelos deuses, sendo condenada a repetir sempre as últimas palavras que as pessoas falassem. Quando a paixão por Narciso não é correspondida, Eco definha e sua voz permanece ecoando no espaço, chamando “Narciso, Narciso, Narciso”.
Mais tarde, o rapaz morrendo de sede, se ajoelha perante um riacho para beber água, e sem querer vê sua imagem na superfície da água, se apaixonando perdidamente por si mesmo. Narciso morre na posição em que estava, definhando aos poucos, incapaz de abandonar a própria imagem, tão amada.
Instigava a Hudinilson as relações presentes e as camadas que esse mito possui, tanto é que o artista produziu diversas outras obras a partir desta mesma referência, o que fazia total sentido com alguns aspectos que já comentei anteriormente, como a reflexão pessoal que Jr. fazia a partir da representação do eu. Segundo a psicanálise, e novamente cito Pedro de Santi, o narcisismo, para além do tom pejorativo, engloba, sobretudo, a ideia de investimento em si mesmo, o limite entre o Eu e o Outro e a auto preservação.
Assim, Ecco Narcisus é formada por três imagens – aquelas que são montadas a partir das tiras de fax – ligadas à iconografia cristã: um pedaço do Êxtase de Santa Teresa, de Bernini; um detalhe do rosto de Jesus de Pietà, de Michelangelo e uma fotografia de um homem nu, associada pelo artista ao sudário ou mortalha, como o Santo Sudário de Turim. As três imagens, já carregadas de simbologias, ficam penduradas na vertical, e cercam o lago de espelhos que está no centro da instalação, no chão. E por fim, aos pés do “lago”, ao invés de uma flor de narciso, como no mito, há uma pedra tumular, simbolizando um cenotáfio, ou seja, um túmulo vazio, sem que um corpo tenha sido sepultado nele.
A figura de Eco aparece na obra de forma poética e ressignificada, simbolizada pela pedra em granito, onde estão gravadas as palavras Ecco Narcisus. A solidez do mármore e a permanência eterna daqueles nomes ali entalhados se contrapõem com o destino da ninfa e do guerreiro, que ao perecerem diante da paixão não correspondida, tem seus corpos dissolvidos, sem sepultamento.
Ou seja, a intenção de que as imagens impressas nas bobinas de fax desaparecessem não era apenas um desejo abstrato de Hudinilson, mas este também imaginou na lenta dissolução das imagens, a metáfora para os desaparecimentos sem vestígios que estão presentes no mito.
A partir do erotismo e da ruptura, desafiando os paradigmas já pré concebidos sobre o entendimento do Eu, do Outro e das relações interpessoais, políticas e artísticas, Hudinilson produziu uma obra multilinguagem, recheada de camadas, produzindo um cenotáfio para o Deus cristão e para o jovem de beleza ímpar, que nasceu do encontro mágico entre um deus e uma ninfa.
Até aqui, falamos bastante sobre a permanência das memórias e dos relatos na história humana. Sobre as nuances entre preservar e deixar esvair. Tracei alguns paralelos entre arte, vida, permanência e mutação, mas para, entre aspas, fechar esta história, o que fica, é o caminho do meio, o inesperado entre um pólo e outro.
Finalmente, quando Ecco Narcisus foi doada ao CCSP, em 2014, o que se esperava era ver todas as bobinas em branco, já que o tempo havia sido suficiente para fazer com que as imagens desbotassem até sumir. Mas para surpresa da Cláudia e de todos que conheciam essa história…
[Cláudia Bianchi] A obra não sumiu, ficou lá, e aí quando ele doou ele achou que estava tudo em branco, e quando a gente abriu todas as imagens estavam preservadas, porque ela nunca ficou exposta à luz.
Ao abrir as caixas, as imagens nas bobinas estavam intactas. Ao escondê-las dentro de caixas, longe da luz, o artista preservou sua obra para a posteridade, sem querer.
A obra concebida por mãos terrenas desafiou o seu criador, já que permaneceu intacta, assim como as ideias e os símbolos que ela carrega. Talvez, todos nós tenhamos um pouco de Eco e um pouco de Narciso, um pouco de sagrado e um pouco de profano, um pouco de nós e um pouco do outro, em constante estado de deterioração e restauro, e por isso compartilhamos histórias.
Esse foi o primeiro episódio do podcast “Sem Título”, do Centro Cultural São Paulo. Em breve, novos episódios estarão no ar, trazendo histórias de outros acervos.
Informações mais detalhadas sobre os acervos, visitação, notas deste episódio e outros materiais, você encontra em nosso site: centrocultural.sp.gov.br
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Este episódio teve
Roteiro, pesquisa e narração de Tessi Ferreira
Colaboração de Cláudia Bianchi
Captação de áudio de Eduardo Naves
Captação de vídeo de José Amador
Edição de áudio e vídeo de Rubens Gonçalves
Arte gráfica de Tamiris Viana
Revisão de texto de Isabela Pretti
Muito obrigada e até a próxima!