Literatura produzida por mulheres

No contexto do Centro Cultural São Paulo

 

A escrita literária feminina de diversas nacionalidades e períodos históricos vem recentemente ganhando mais visibilidade e difusão. Ainda assim, a equiparação das obras de homens e mulheres enfrenta grandes obstáculos e parece estar longe de ser ajustada. Iniciativas como o clube mensal de leitura Leia mulheres procura alternativas para dialogarmos e disseminarmos obras de escritoras.

O coletivo Leia mulheres se propõe a ler, debater e divulgar a obra de uma autora por mês, realizando seus encontros gratuitamente nas tardes de sábado em bibliotecas, livrarias ou centros culturais. Em 2018, por exemplo, um dos volumes de poesia de Hilda Hilst foi discutido (Júbilo, memória, noviciado da paixão) no CCSP, bem como a indiana Arundhati Roy (O deus das pequenas coisas) e a afro-americana Octavia Butler (Kindred – laços de sangue) tiveram suas obras-primas debatidas. O grupo, portanto, aborda diversos gêneros literários, incluindo, além dos citados acima, histórias em quadrinhos, coletâneas de contos, entre outros.

Entretanto, com o tempo, e apesar de todas as limitações, as mulheres lutaram por diversas formas de expressar ideias, pensamentos e valores que lhes eram atribuídos, mas raramente escutados, empenhando-se em mostrar seus pontos de vista sobre todos os temas abordados até então exclusivamente pelos homens, da sexualidade à religião, bem como iniciando a discussão de temas inerentes à mulher e nunca discutidos de forma mais aprofundada, como o aborto, a maternidade, etc.

Deise Getúlia de Melo e Yumi Trivellato Melo, da Curadoria de Literatura do CCSP, atentam para o fato de a literatura dialogar com a própria ausência da mulher nas obras e nos textos. Se a mulher, historicamente, foi impedida de se expressar com sua própria voz, homens se “expressaram” por elas, idealizando considerações e características conforme o (des)conhecimento deles em relação à vida e à mundividência delas.

Deise acredita que, no presente momento, houve uma significativa evolução na área, uma vez que atualmente a produção não só existe como tem se intensificado com o passar dos anos. O desafio está agora na difusão dessa produção. A ausência de um “espaço para manifestações de um trabalho se sustenta como um trabalho qualificado, e não como demanda porque as mulheres precisam aparecer”.

No caso do Brasil, além do estranhamento a uma literatura produzida por mulheres, isto é, previamente marginalizada, a barreira da língua também é um agente dificultador do processo. Se há uma escassez de leitores dentro do próprio Brasil, a procura pelos livros de literatura brasileira é menor ainda fora do País, já que há poucas traduções reconhecidas e divulgadas no mercado e um pequeno ou nenhum interesse na língua e cultura portuguesas, principalmente a brasileira.

Outra problemática levantada é a abordagem acadêmica da literatura produzida por mulheres, em que as autoras canonizadas – cujo número é significativamente menor do que os autores homens – são pouco pesquisadas ou apenas citadas em cursos de ensino médio ou superior, com destaque para Clarice Lispector, Cecília Meireles e Rachel de Queiroz.

Atualmente, correntes de estudos literários, editoras renomadas e eventos grandes, como festas literárias e feiras de livro, têm promovido ações para uma redescoberta e uma revalorização de autoras como Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus e Ana Cristina Cesar, homenageando-as e/ou relançando seus livros. Segundo Deise, o crucial é “ampliar nossos horizontes com coisas novas, de dentro ou de fora [do Brasil], sendo que o novo pode ser esse antigo que está tendo espaço agora”.

 

No contexto histórico

 

Não é novidade que a tradição patriarcal prevaleça tanto nas ciências humanas quanto na sociedade atual, sendo naturalmente refletida na produção artística dos dias de hoje – principalmente na literatura. No entanto, a difusão de textos literários escritos por autoras vem se intensificando com o passar do tempo, e o debate acerca desse assunto passou a atingir os principais canais de comunicação recentemente. De Jane Austen a Chimamanda Ngozi Adichie, as escritoras estão cada vez mais presentes nas escolas, na mídia e na cultura do Ocidente de modo geral.

Para estabelecer aspectos que motivaram o número escasso de mulheres relevantes na literatura em comparação aos homens e indicar as principais reflexões sociais e históricas que uma presente reparação sugere é preciso analisar de forma panorâmica e abrangente o cenário literário em que as principais escritoras compuseram e publicaram (ou não) suas obras, investigando até que ponto aqueles contextos estavam dispostos a receber livros com tamanha potência crítica e artística.

Na Idade Antiga, por exemplo, o maior expoente da literatura feita por mulheres é Safo de Lesbos, que celebrava principalmente o caráter ritualístico e o amor homoerótico presentes na vida social e nas grandes reuniões e celebrações gregas. Por pertencer a uma época em que a tradição oral predominava em detrimento da escrita, o primeiro registro de Safo é datado do século III a.C., compondo uma obra que, quando completa, reuniria nove volumes de poesia.

Se apenas o clero e parte da nobreza tinham acesso à leitura e a algum tipo de educação, a tradição oral permaneceu dominante na Idade Média. Essa educação, entretanto, tratava cada vez mais a arte como intrinsecamente ligada à religião. Logo, as cantigas de amigo e de amor, principais formas literárias da época, escritas de modo invariável por homens, reforçavam a imagem idealizada, rasa e estereotipada atribuída à mulher, impedindo-a de tratar de assuntos externos ao cuidado com a casa e os filhos.

Mais adiante, em períodos importantes para a história da arte como o Renascimento e o Barroco, por mais que gêneros literários como o teatral e o novelístico estivessem em ascensão graças a escritores como Shakespeare e Cervantes, a representação da mulher ainda era como objeto e não como sujeito. Personagens presentes em tragédias de Shakespeare, por exemplo, ainda que complexas e com bom desenvolvimento ao longo da obra, não eram protagonistas tão próximas das mulheres da vida real.

Contextos como a Inglaterra da era Vitoriana foram centrais na valorização de uma literatura escrita por mulheres, nos quais as autoras que obtinham sucesso com seus romances chegavam, posteriormente, a publicar seus textos em formatos como o folhetim, em alta no fim do século XIX. Entretanto, o conteúdo escrito pelas autoras era considerado uma “literatura menor”, tratada como subgênero pela maior parte da sociedade letrada – que separava os textos escritos pelas mulheres como leituras restritas ao gênero feminino também. Pode-se pensar, portanto, que, se havia um pequeno número de mulheres escritoras, a quantidade de mulheres leitoras era proporcionalmente mínima e, por isso, o reconhecimento e a legitimação desses textos enfrentaram obstáculos bem maiores do que os escritos por homens na mesma época, que obtiveram estrondoso sucesso, como Charles Dickens ou William Theckeray.

Com o passar do tempo, porém, personagens femininas criadas por mulheres naquela mesma época – como as fortes e determinadas Elisabeth Bennet, protagonista de Orgulho e preconceito (1813), e Catherine Earnshaw, heroína de O morro dos ventos uivantes (1847) – passaram a ser recebidas pela crítica de forma menos agressiva e desrespeitosa, ainda que fugindo dos padrões idealizados e propostos pelo Romantismo.

Por esta subversão dos padrões das personagens, pelo ritmo folhetinesco e pelo uso de uma variação da língua mais próxima àquela utilizada no cotidiano britânico da época, romances das irmãs Brontë, de Jane Austen, de Mary Shelley e de outras escritoras tornaram-se grandes sucessos de público. Contudo, ainda levou certo tempo para uma recepção um pouco mais acolhedora por parte da crítica especializada, que veio paulatinamente e em contextos restritos como o Reino Unido da era Vitoriana.

Após essa grande porta de entrada, o século XX foi o ponto de virada na história da literatura – e de outras formas de arte – produzida por mulheres. Com a criação do prêmio Nobel de literatura, em 1901, a Academia Sueca possibilitou uma nova plataforma responsável por laurear aqueles que seriam os novos escritores estabelecidos em uma espécie de seleção canônica dos melhores escritores de cada ano. Em 1909, Selma Lagerlöf tornou-se a primeira mulher a ganhar o prêmio. Desde então, mais 13 mulheres já foram premiadas pela Academia, entre elas Gabriela Mistral (em 1945) e Nadine Gardimer (em 1991).

Exemplos como esses, embora desconhecidos do grande público, reforçam uma abertura maior por parte de acadêmicos e críticos da literatura produzida por mulheres, que ainda teve no século XX representantes que exploraram temas como a profundidade do plano psicológico no caso de Virginia Woolf, o envolvimento espiritual de Isabel Allende ou a retomada do gótico por Harper Lee.

Outras literaturas hegemônicas, em especial a francesa, resgatariam inclusive a literatura hoje chamada de feminista, com textos mais desafiadores, como o tratado O segundo sexo (1949), de Simone de Beauvoir, e o romance O amante (1984), de Marguerite Duras, em que a condição feminina é explicitada de maneira mais contundente e aberta.

Particularmente no Brasil, apenas durante o século XX mulheres como Rachel de Queiroz, Cecília Meireles e Clarice Lispector despontaram como grandes escritoras, cada uma a seu modo particular, ganhando a atenção da crítica e do público da época. Mesmo assim, a personalidade mítica e idealizada construída socialmente ao redor dessas e outras autoras na época retirava a ênfase da indiscutível qualidade das obras, subordinando o contexto e perspectivas de análise aos dados pessoais e biográficos das escritoras.

Entretanto, inúmeras pesquisas e estudos mais recentes acerca da literatura escrita por mulheres apontam que, durante o auge do Romantismo no Brasil, escritoras produziam obras de ótima qualidade e grande relevância nos estudos literários, como Maria Firmina dos Reis e seu romance Úrsula (1856), que trata de temas como a escravidão e a maternidade de um modo muito distinto e mais aprofundado se comparado com a literatura de José de Alencar e Gonçalves Dias, tidos como os principais expoentes literários da época.

A redescoberta nacional do diário Quarto de despejo (1960), de Carolina Maria de Jesus, e a adaptação para série de O conto da Aia (1985), de Margaret Atwood, marcam um período em que não apenas autoras contemporâneas são lidas, celebradas e chegam a ficar nas listas dos mais vendidos como também os contos e romances de Chimamanda Ngozi Adichie e a saga Harry Potter, de J. K. Rowling, tornam-se fenômenos mundiais.

Deise acredita que “as dificuldades que permeiam a história da mulher na literatura são, talvez, as mesmas na música, nas artes plásticas. É a mesma em toda e qualquer forma de manifestação artística, e mesmo de outros tipos de trabalho.” Ela ainda identifica “uma dificuldade muito grande que a sociedade sempre teve, e agora tem cada vez menos de fazer uma difusão do trabalho da mulher”.

Além de envolver um processo de autoafirmação e da formação identitária, a literatura produzida por mulheres precisou ultrapassar obstáculos realmente físicos, ou melhor, territoriais. Se a condição de vida da mulher envolvia apenas o espaço privado, era muito pouco provável que o conhecimento de mundo dela alcançasse ou superasse o de seu companheiro, uma vez que a contenção e o aprisionamento da mulher dentro de casa eram idealizadamente necessários em nome de uma “harmonia no lar” para o homem – que poderia ser traduzida como uma opressão para a mulher – e a preservação dos patrimônios e da instituição familiar – função atribuída à mulher de uma maneira a não deixar que ela obtivesse livre-arbítrio para decidir que função desempenhar.

É importante distinguir ainda a literatura feita por mulheres da literatura feminista, já que a primeira não necessariamente tinha como principal finalidade centralizar suas discussões na equiparação de condições de vida entre os sexos, desenvolvendo outros temas além desse. O primeiro grande clássico da literatura hoje chamada feminista é Uma reivindicação dos direitos da mulher (1792), de Mary Wollstonecraft, em que a autora defende uma educação que aproveitasse suficientemente o potencial humano presente na mulher.

Não se trata apenas de uma necessidade de inclusão das autoras para aumentar o número de mulheres consagradas pela literatura. Mais do que isto, é sobre reconhecer o pioneirismo e o posicionamento de pessoas que viveram em uma condição opressiva e repressiva ao lidar com questões impostas, como o casamento, a maternidade, o amor e a submissão. A reparação histórica é feita de forma gradual e constante, com uma produção mais acentuada tanto de textos literários quanto de pesquisas envolvendo escritos mais antigos, mas desconhecidos ou desprezados por estudos anteriores em virtude de diversas razões apresentadas aqui.

Nossos papéis como leitores no século XXI são, sendo assim, os de questionar as condições sob as quais a literatura feminina foi marginalizada e de entrar em contato com escritoras de todas as épocas, nacionalidades e condições sociais, permitindo não apenas a inclusão desses textos na literatura ocidental como também uma naturalização e uma valorização, atribuindo características particulares e que permitam um desenvolvimento dos estudos e da divulgação deles.

Texto: João Vitor Guimarães
Revisão: Paulo Vinício de Brito
Ilustração: Beatriz Simões
Entrevista: Marcia Dutra
Colaboração: Deise Getúlia de Melo e Yumi Trivellato Melo (Curadoria de Literatura do CCSP)

*Publicado em 28 de setembro de 2018

Posts Relacionados

Comece a digitar sua pesquisa acima e pressione Enter para pesquisar. Pressione ESC para cancelar.

De volta ao topo
plugins premium WordPress