Em 1964, com a instauração da Ditadura Militar no Brasil, artistas se reorganizaram em uma frente de resistência ao processo de censura e perseguição – medidas do regime autoritário, intencionando eliminar qualquer forma de oposição à ideologia dominante, que atingiriam seu pico com a criação, em 1968, do AI-5 (Ato Institucional nº 5). Desse modo, grande parte da classe artística do País se engajou na luta pela liberdade de expressão, na denúncia da política vigente e na abordagem de assuntos tidos como tabus pela sociedade.
Na literatura do período a escritora Cassandra Rios (1932-2002) tem papel de destaque com uma produção cuja linha central é a abordagem da homossexualidade feminina. Em tempos em que a diversidade sexual era somente reconhecida à margem da sociedade tida como tradicional, nota-se como a autora, a partir de seus romances, remou na contramão de um sistema heteronormativo que funcionava como instrumento de opressão para lésbicas e gays. A ficção de Cassandra traz a representação das vidas e subjetividades homossexuais inseridas na vida cotidiana brasileira. Assim, os personagens são construídos não por uma visão exótica, mas pela complexidade natural de qualquer ser humano.
O trabalho de Rios propõe um desafio à visão dominante e arbitrária em relação à homossexualidade. Por isso mesmo, produzindo em um contexto de repressão institucionalizada, a escritora foi vítima de diversas perseguições por conta de seu engajamento ao trazer à tona, pela literatura, as existências múltiplas. Segundo Cassandra, “desde o início da minha trajetória, eu tenho sido perseguida por ter aberto a cortina da hipocrisia, por ter rompido preconceitos e por ter pisado tabus a fim de despertar interesse em determinado assunto, libertando-o das amarras da falsa moral.”
Nesse mesmo sentido, o poeta Roberto Piva (1937-2010) não só fazia de sua literatura um gesto de transgressão da moral, mas levava esse engajamento para sua própria vida: “só acredito em poeta experimental que tenha vida experimental”. A frase do poeta, repetida tantas vezes pelo próprio artista, sintetiza sua produção: a poesia é vital, inseparável da vida. Ele escreve aquilo que vive – e enxerga além. Assim como Cassandra Rios, Piva também era um artista homossexual que, com sua trajetória literária, questionava os moralismos da corrente conservadora responsável por guiar a sociedade da época. A busca do homem gay, na visão do poeta, não era a aceitação e a integração na sociedade tradicional. Segundo ele, “o homossexual é aceito quando se veste de heterossexual e quando mostra o cartão de crédito”.
Outro autor importante na discussão da discriminação decorrente de orientações sexuais distintas da heterossexualidade é Caio Fernando Abreu (1948-1996), que aborda a angústia, a solidão e o sentimento de exclusão de forma intensa em seus contos, peças e romances publicados entre as décadas de 1970 e 1990. Eventos de sua vida pessoal, como a perseguição do governo ditatorial, o exílio na Inglaterra e a crise da AIDS – Caio era soropositivo e chegou inclusive a escrever crônicas e contos a partir do hospital – aparecem diretamente em sua obra, que inclui narrativas em que o protagonista busca continuamente uma identidade e um estado de espírito que o movam adiante e renovem seu interesse pela vida.
Também pertencente a uma geração mais recente da literatura brasileira, João Silvério Trevisan (1944-) concilia literatura e estudos sociais e antropológicos a respeito da homossexualidade no Brasil em publicações como, respectivamente, Em nome do desejo (1983) e Devassos no paraíso (1986). Além de roteirizar e produzir curtas e longas-metragens – alguns censurados pela ditadura –, Trevisan cria, nos anos 1970, o primeiro jornal voltado para a diversidade sexual (Lampião da esquina) e se torna um dos ativistas pioneiros no País daquilo que passou a ser chamado de movimento LGBTQIA+ décadas depois, buscando uma transgressão radical e defendendo a ideia de que uma consciência livre pode inspirar outras a serem também.
O conflito entre identidade e sexualidade, recorrente na obra de todos os autores citados aqui – e muitos outros, dessa época ou não, que abordam a discriminação pela orientação sexual –, reflete a necessidade inerente ao ser humano de reconhecimento do outro para o cumprimento das próprias atividades, tanto no âmbito individual quanto no coletivo. Dessa forma, os autores aqui reunidos não restringem ou classificam as sexualidades distintas daquela dominante, uma vez que o foco está em como a discriminação, o isolamento e o sofrimento se dão pela forma como a sociedade rejeita alguém com base em apenas uma característica, reduzindo-o e rotulando-o a partir de um único aspecto que não está ao alcance de ele próprio alterar.
Clique aqui para consultar os livros dos autores citados no texto disponíveis nas Bibliotecas do CCSP
Texto: Danilo Satou e João Vitor Guimarães
Revisão: Paulo Vinicio de Brito
Ilustração da capa: Beatriz Simões (ilustração feita a partir de uma foto do cantor Diego Moraes)