Ainda hoje associada a uma escrita rebuscada e de alto grau de erudição, Hilda Hilst (1930-2004) produziu, ao longo de sua trajetória, textos em prosa, poemas, peças de teatro e crônicas. É comum verificar em muitas de suas obras o convívio entre gêneros literários diversos, sendo difícil, em alguns casos, identificar seus escritos de modo estanque, sobretudo aqueles em que predomina o registro em prosa. Se, a princípio, a inventividade temática e formal de Hilda pode assustar, ela nos possibilita, por conta do sobressalto mesmo, rever nossas expectativas e experiências habituais de leitura.
Quem foi Hilda Hilst
Hilda de Almeida Prado Hilst nasce na cidade de Jaú, no interior de São Paulo, em 21 de abril de 1930. Filha de uma imigrante portuguesa e de um fazendeiro de café, escritor e poeta – que se separam dois anos depois de seu nascimento –, Hilda vive em São Paulo com a mãe a partir de 1937, ano em que é matriculada no Colégio Santa Marcelina. Seu contato com o pai é praticamente nulo, em virtude de diversas internações a que ele é submetido após ser diagnosticado como esquizofrênico paranoico.
Em 1945 dá início aos estudos secundários no Mackenzie, concluindo-os em 1947 para, já no ano seguinte, entrar na Faculdade de Direito do Largo São Francisco da Universidade de São Paulo. É ali que conhece a grande amiga Lygia Fagundes Telles. Aos 20 anos, publica seu primeiro livro, Presságio, todo formado de poemas, assim como as obras seguintes. Somente na segunda metade da década de 1960 Hilda começa a escrever peças teatrais. Sua incursão na dramaturgia não se estende para além dos anos 1960, ainda que diversas montagens levem seus textos aos palcos durante toda a sua trajetória.
Fluxo-floema, de 1970, inaugura a prosa hilstiana. Já nesse livro de estreia em prosa de ficção Hilda deixa evidente a porosidade dos gêneros literários em sua obra. Em 1974, publica um de seus livros de poemas mais conhecidos, Júbilo, memória, noviciado da paixão, após mais de uma década dedicada à escrita dramatúrgica e à prosa. Casa-se, nesse meio tempo, em 1968, com Dante Casarini, de quem se divorcia apenas em 1985. Um pouco antes, no ano de 1964, muda-se para uma propriedade de posse da família, localizada na cidade de Campinas, onde constrói a residência denominada Casa do Sol. Nela reside até a morte, em 2004, fazendo daquele espaço seu refúgio criativo. Frequentado por artistas e intelectuais das mais distintas áreas ao longo dos anos em que Hilda ali morou, atualmente o local abriga o Instituto Hilda Hilst, que tem como objetivo disseminar a obra e a memória da escritora.
Entre os anos de 1970 e 1990, Hilda se dedica tanto à poesia quanto à prosa, tendo boa parte de seus livros publicados em tiragens artesanais a cargo de um dos principais editores independentes do País, o paulista Massao Ohno. Destacam-se, entre os muitos títulos da trajetória de Hilda, Tu não te moves de ti (1980), A obscena senhora D (1982), Cantares de perda e predileção (1983) – ganhador do Prêmio Jabuti –, Poemas malditos, gozosos e devotos (1984) e Estar sendo. Ter sido (1997). O lançamento deste, aliás, marca o anúncio do afastamento da autora do trabalho literário.
Tendo recebido importantes prêmios, como Jabuti e APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte), no decorrer de sua atividade artística Hilda provoca incisivamente o meio literário brasileiro nos anos 1990 ao aderir ao registro pornográfico com a publicação de O caderno rosa de Lori Lamby (1990), primeiro dos textos que integram a tetralogia obscena da escritora – Contos d’escárnio. Textos grotescos (1990), Cartas de um sedutor (1991) e Bufólicas (1992) –, como uma estratégia de quebrar o que ela chama de silêncio sobre seu trabalho e alcançar um público mais amplo.
A urgência da poesia de Hilda
A atividade literária de Hilda tem início com um livro de poesia intitulado Presságio e lançado pela autora em 1950, aos 20 anos de idade. Ainda que a relevância de sua poesia só comece a ser atestada pela crítica de maneira mais contundente a partir da publicação de Trovas de muito amor para um amado senhor (1960), em Presságio já se vislumbra a força poética da autora.
VI
Água esparramada em cristal,
buraco de concha,
segredarei em teus ouvidos
os meus tormentos.
Apareceu qualquer cousa
em minha vida toda cinza,
embaçada, como água
esparramada em cristal.
Ritmo colorido
dos meus dias de espera,
duas, três, quatro horas,
e os teus ouvidos
eram buracos de concha,
retorcidos
no desespero de não querer ouvir.
Me fizeram de pedra
quando eu queria
ser feita de amor.
A poesia de Hilda, como o sexto poema de seu livro de estreia já sugere, não se distancia da tradição da lírica amorosa, mas se nota pouca preocupação com as convenções do poema – já transgredidas por seus antecessores modernistas – e com o rigor e a pesquisa formal que caracterizam, por exemplo, a produção de um contemporâneo como João Cabral de Melo Neto – de quem Hilda, aliás, é desafeto declarado.
Para Hilda, o “estado poético”, ainda que precedido de estudos, leituras e reflexões, exige uma disposição muito mais intuitiva do que intelectual. Por isso sua poesia – e sua produção literária de modo geral – instaura-se como condição de urgência.
VI
Tudo vive em mim. Tudo se entranha
Na minha tumultuada vida. E por isso
Não te enganas, homem, meu irmão,
Quando dizes na noite, que só a mim me vejo.
Vendo-me a mim, a ti. E a esses que passam
Nas manhãs, carregados de medo, de pobreza,
O olhar aguado, todos eles em mim,
Porque o poeta é irmão do escondido das gentes
Descobre além da aparência, é antes de tudo
LIVRE, e por isso conhece. Quando o poeta fala
Fala do seu quarto, não fala do palanque,
Não está no comício, não deseja riqueza
Não barganha, sabe que o ouro é sangue
Tem os olhos no espírito do homem
No possível infinito. Sabe de cada um
A própria fome. E porque é assim, eu te peço:
Escuta-me. Olha-me. Enquanto vive um poeta
O homem está vivo.
A série “Poemas aos homens do nosso tempo”, da qual faz parte o poema acima, é uma das mais conhecidas passagens da escritora. Publicada em Júbilo, memória, noviciado da paixão (1974), associa-se fortemente ao contexto político vivido pelo Brasil naquele momento, em que a repressão do regime ditatorial recrudescia. “Irmão do escondido das gentes”, o poeta não está distante da realidade que o rodeia e na qual se insere, mas, antes, é capaz de guardar em si todos os sentimentos do mundo. “Tudo vive em mim” é o que se anuncia na abertura do poema. O tumulto do poeta e o tumulto do mundo não estão apartados: confluem e se confundem. E nessa imbricação a poesia assume caráter de urgência enquanto possibilidade de sobrevivência: “Enquanto vive um poeta/O homem está vivo”.
I
Carrega-me contigo, Pássaro-Poesia
Quando cruzares o Amanhã, a luz, o impossível
Porque de barro e palha tem sido esta viagem
Que faço a sós comigo. Isenta de traçado
Ou de complicada geografia, sem nenhuma bagagem
Hei de levar apenas a vertigem e a fé:
Para teu corpo de luz, dois fardos breves.
Deixarei palavras e cantigas. E movediças
Embaçadas vias de Ilusão.
Não cantei cotidianos. Só cantei a ti
Pássaro-Poesia
E a paisagem-limite: o fosso, o extremo
A convulsão do Homem.
Carrega-me contigo.
No Amanhã.
Série de vinte poemas publicada pela primeira vez em 1989, pelo selo Massao Ohno, Amavisse traz novamente, em seu poema de abertura, o lugar de premência que a poesia ocupa na obra hilstiana. É por meio dela que se canta “o fosso, o extremo, a convulsão do homem” e as palavras e cantigas são os rastros de inscrição do poeta no mundo.
Vislumbra-se aqui, também, a abordagem metafísica em que boa parte da produção de Hilda se assenta. Muito do hermetismo que se atribui à sua escrita, inclusive, associa-se ao conhecimento literário, filosófico e científico que ela mobiliza em seus textos de caráter especulativo em relação aos temas metafísicos, especialmente os de prosa de ficção. Suas reflexões a respeito da morte e de Deus, aqui selecionadas, entretanto, pouco confirmam o alto nível de erudição que a literatura de Hilda supostamente exigiria do leitor:
XXIX
Te sei. Em vida
Provei teu gosto.
Perda, partidas
Memória, pó
Com a boca viva provei
Teu gosto, teu sumo grosso.
Em vida, morte, te sei.
XII
Estou sozinha se penso que tu existes.
Não tenho dados de ti, nem tenho tua vizinhança.
E igualmente sozinha se tu não existes.
De que me adiantam
Poemas ou narrativas buscando
Aquilo, que se não é, não existe
Ou se existe, então se esconde
Em sumidouros e cimos, nomenclaturas
Naquelas não evidências
Da matemática pura?
É preciso conhecer
Com precisão para amar?
Não te conheço.
Só sei que me desmereço se não sangro.
Só sei que fico afastada
De uns fios de conhecimento, se não tento.
Estou sozinha, meu Deus, se te penso.
Se, no poema XXIX de Da morte. Odes mínimas (1980), o conhecimento da morte, ainda em vida, é pleno, Deus permanece envolto em seu mistério, no poema XII de Poemas malditos, gozosos e devotos (1984). A interpelação a Deus, aqui, parece se distanciar da busca pela transcendência – tão cara ao cânone literário –, assim como se reconfigura na obra de Hilda a tradição da lírica amorosa que transcende o ser amado, o que se vê no poema I de “Dez chamamentos ao amigo”, do já mencionado Júbilo, memória, noviciado da paixão. O enlevo das almas dá lugar à busca pelo terreno:
I
Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse
Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.
Último dos livros que integram a controversa tetralogia obscena de Hilda, Bufólicas (1992) é composto de poemas satíricos em que, ao fim de todos eles, registra-se uma “moral da estória”. O tom fabular conferido às histórias de teor pornográfico, organizadas na forma de poema, é bem significativo no que diz respeito à quebra do decoro literário que Hilda empreende mesmo em sua literatura dita séria.
O reizinho gay
Mudo, pintudão
O reizinho gay
Reinava soberano
Sobre toda nação.
Mas reinava…
APENAS….
Pela linda peroba
Que se lhe adivinhava
Entre as coxas grossas.
Quando os doutos do reino
Fizeram-lhe perguntas
Como por exemplo
Se um rei pintudo
Teria o direito
De somente por isso
Ficar sempre mudo
Pela primeira vez
Mostrou-lhes a bronha
Sem cerimônia.
Foi um Oh!!! Geral
E desmaios e ais
E doutos e senhoras
Despencaram nos braços
De seus aios.
E de muitos maridos
Sabichões e bispos
Escapou-se um grito.
Daí em diante
Sempre que a multidão
Se mostrava odiosa
Com a falta de palavras
Do chefe da Nação
O reizinho gay
Aparecia indômito
Na rampa ou na sacada
Com a bronha na mão.
E eram ós agudos
Dissidentes mudos
Que se ajoelhavam
Diante do mistério
Desse régio falo
Que de tão gigante
Parecia etéreo.
E foi assim que o reino
Embasbacado, mudo
Aquietou-se sonhando
Com seu rei pintudo.
Mas um dia…
Acabou-se da turba a fantasia.
O reizinho gritou
Na rampa e na sacada
Ao meio-dia:
Ando cansado
De exibir meu mastruço
Para quem nem é russo.
E quero sem demora
Um bocado negro
Para raspar meu ganso.
Quero um cu cabeludo!
E foi assim
Que o reino inteiro
Sucumbiu de susto.
Diante de tal evento…
Desse reino perdido
Na memória dos tempos
Só restaram cinzas
Levadas pelo vento.
Moral da história:
a palavra é necessária
diante do absurdo.
+Para saber mais sobre Hilda Hilst:
HILST, Hilda. Da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
HILST, Hilda. Pornô chic. São Paulo: Globo, 2014.
PÉCORA, Alcir. (org.) Por que ler Hilda Hilst. São Paulo: Globo, 2010.
Texto: Vinícius Máximo
Revisão: Paulo Vinicio de Brito
Ilustração: Beatriz Vecchia
*Publicado em 15 de agosto de 2018