O que é uma cidade? De quantas maneiras uma cidade pode ser vista? O que significa morar em uma cidade? A princípio, essas questões podem parecer óbvias ou didáticas. Mas, se sairmos perguntando por aí, veremos que as respostas podem ser infinitas, já que significam uma coisa para cada indivíduo.
A cidade é um símbolo em que vivemos, onde nos apropriamos diariamente daquilo que nos representa dentro dela. Sejamos nós um morador de um bairro classe média ou de um bairro periférico. Lembro-me de uma cena bastante marcante de Aquarius (2016), filme de Kleber Mendonça Filho, em que Clara, personagem de Sonia Braga, está passeando com o sobrinho pela praia, no Recife, e explica que existe uma divisão, feita por um cano de esgoto, dentro da faixa de areia que estabelece que de um lado é a “parte rica” e do outro é a “parte pobre”. Ou seja, de um lado, o bairro de Pina e, do outro, Brasília Teimosa.
Em outro retrato cinematográfico, feito pelo cineasta Gabriel Mascaro, o bairro de Brasília Teimosa é o centro: o documentário Avenida Brasília Formosa (2010), em referência à avenida de mesmo nome no Recife. A construção do filme de Mascaro é muito mais voltada a esse bairro do que aos personagens propriamente dito, diferentemente de seu longa anterior, Um Lugar ao Sol (2009), em que o retrato principal é de certa classe média alta brasileira. Os dois são retratos complementares: o primeiro mostrando os que vivem embaixo e o segundo, os que observam de cima.
Em Avenida Brasília Formosa, os habitantes transitam de uma maneira em que a privacidade não chega nem a ser cogitada. Privacidade é para quem mora nas coberturas, que não quer nem ouvir o barulho de panelas que vem da cozinha, como diz uma das personagens de Um Lugar ao Sol. É interessante poder encontrar esses dois retratos tão bem definidos por Mascaro. Definidos tanto na temática quanto na forma de filmar. Enquanto um utiliza as máximas do cinema direto, o outro flerta com o documentário clássico. E isso parece definir bastante as duas realidades: enquanto uma pode ser maleável, viva, aberta, como as ruas de Brasília Teimosa, a outra é restrita, fechada, dura, como os prédios de Um Lugar ao Sol. Não observamos o cotidiano dos moradores de coberturas senão pelo que eles nos contam. Por outro lado, vivemos as ruas de Brasília Teimosa, vemos o movimento daquelas pessoas, jantamos com eles, dançamos, vivemos suas vidas.
Acho que é importante tentar enxergar o que Mascaro nos coloca como um ponto principal desse retrato sociocultural. Apesar de Um Lugar ao Sol não ser apenas focado no Recife, ali podemos ter uma amostra de representantes da classe média alta brasileira. Com esses dois longas, vemos a nossa clássica pirâmide social brasileira em que a base sustenta as regalias da ponta. Há uma afirmação de Darcy Ribeiro que considero muito pertinente para acrescentar a esses dois documentários: “Essa estrutura de classes engloba e organiza todo o povo, operando como um sistema autoperpetuante da ordem social vigente. Seu comando natural são as classes dominantes. Seus setores mais dinâmicos são as classes intermédias. Seu núcleo mais combativo, as classes subalternas. E seu componente majoritário são as classes oprimidas, só capazes de explosões catárticas ou de expressão indireta da sua revolta. Geralmente estão resignadas com seu destino, apesar da miserabilidade em que vivem, e por sua incapacidade de organizar-se e enfrentar os donos do poder” [1]. E é exatamente isso que vemos retratado nesses dois documentários. Tanto a resignação das classes oprimidas que almejam, por exemplo, participar do Big Brother Brasil, como os donos do poder que observam com glamour a troca de tiros entre morros cariocas.
Para sintetizar, eu diria que Mascaro fez com esses dois documentários o que Adriana Varejão fez em sua série Língua (1998). Varejão, ao cortar os azulejos portugueses exibindo a carne, o sangue, as vísceras, conseguiu criar uma obra de arte do que Mascaro filma. Abaixo dos azulejos, as entranhas; abaixo das coberturas, Brasília Teimosa. Lilia Moritz Schwarcz definiu essa série de obras de Varejão de uma forma que acredito ser bastante válida também para acrescentar a esses longas: “Difíceis de ver, somente apreendidas por um corte cirúrgico ou por meio de uma ferida acidental, as entranhas são entranhas, antiestéticas, fedem e lembram arbítrio e desordem. Por outro lado, as carnes, quando expostas, chamam sempre muita atenção e não permitem que o espectador passe por elas incólume ou sem expressar qualquer tipo de reação” [2]. E a cidade não deixa de ser um organismo vivo, não deixa de ser feita com azulejos e carne, assim como não deixa de ser a expressão da nossa sociedade.
Mascaro não nos mostra o que é chocante, repugnante, como faz Varejão. Pelo contrário. Ele nos oferece o oposto disso. O que nos prende nesses dois universos não é o choque, mas sim as histórias dessas duas realidades. Como diz Jean-Luc Godard: “Uma imagem não é poderosa por ser brutal ou misteriosa, mas porque a solidariedade das ideias é distante e justa” [3]. Logo, o que importa para Mascaro não é o impacto de uma imagem, mas a sua dilatação enquanto ideia e tempo, tornando-a poderosa por dar continuidade fora da tela. Ou seja, na elaboração do pensamento do espectador.
O recorte de junções e conjunções entre os personagens de Avenida Brasília Formosa e Um Lugar ao Sol tem uma grande importância no que se refere ao retrato de uma cidade. A cidade, assim como o documentário, possui encontros que viabilizam uma sucessão de acontecimentos. Esses encontros, sejam eles feitos pela montagem cinematográfica ou pelo acaso das ruas, são o que constituem a essência desses dois elementos. Como afirma Consuelo Lins e Cláudia Mesquita: “Filmar hoje é, portanto, entrar em um turbilhão de imagens, imiscuir-se no fluxo midiático de representações, confrontar-se com essa espécie de ‘meio ambiente’ contemporâneo” [4]. E dentre todo esse turbilhão, conseguir retratar de alguma maneira uma realidade.
E a cidade é isso. A cidade é a intersecção dessas duas realidades que Mascaro tão bem traduziu nesses dois documentários. E é preciso lembrar que a cidade é viva, que ela pulsa junto com seus habitantes e que a transformação nunca é estagnada. O universo urbano nos oferece um turbilhão de imagens diariamente que, às vezes, precisam ser colocadas em ordem para que possamos entender onde estamos e para onde vamos.
Texto: Caio Narezzi (doutorando em estudos cinematográficos pela Université Lumière Lyon 2 e pela Université de Montréal, colabora mensalmente com o site do Centro Cultural São Paulo)
Revisão: Paulo Vinicio de Brito
Ilustração da capa: Beatriz Vecchia
Notas:
[1] RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro – A formação e o sentido do Brasil. Companhia das Letras, São Paulo, 1995.
[2] SCHWARCZ, Lilia Moritz; VAREJÃO, Adriana. Pérola imperfeita: A história e as histórias na obra de Adriana Varejão. Cobogó, Rio de Janeiro, 2014.
[3] Frase do filme Passion (1982).
[4] LINS, Consuelo; MESQUITA, Cláudia. Filmar o real: sobre o documentário brasileiro contemporâneo. Zahar, Rio de Janeiro, 2008.