A parte da cultura brasileira à qual nós, que compartilhamos a experiência de poder entrar neste site, temos acesso é comumente mediada por grandes instituições, sendo que, na maior parte das vezes, aquilo que se encontra disponível se restringe a registros escritos e formais de documentos, músicas, filmes, etc. Com a exposição Na rota da Missão: 80 anos da Missão de Pesquisas Folclóricas de Mário de Andrade, entretanto, é possível encontrar um resgate de costumes típicos de regiões menos habituadas a uma formalidade no registro artístico, como o Norte e o Nordeste, onde Mário de Andrade (1893-1945) conduziu expedições de estudiosos e pesquisadores no fim da década de 1920.
A exposição celebra os 80 anos da conclusão das pesquisas folclóricas de Mário, naquele momento diretor do Departamento de Cultura de São Paulo, atual Secretaria Municipal de Cultura. Após publicar Macunaíma, o herói sem nenhum caráter (1928) e, na década seguinte, firmar-se como musicólogo, antropólogo e crítico literário, Mário se dedica a organizar uma “Bibliografia básica brasileira de folclore e etnografia”, reiterando sua postura diante da inclusão da área de estudos folclóricos como parte dos estudos de cultura – e não tratada como um fenômeno isolado.
Até a finalização da bibliografia, porém, Mário realizou duas expedições para o Norte e o Nordeste, bem como pesquisas nas obras do antropólogo inglês James Frazer (1854-1941) e do sociólogo francês Lévy-Brühl (1857-1939) sobre seus estudos acerca de religião e mitologia, no caso do primeiro, e sobre a ciência dos costumes, principalmente em relação às sociedades mais primitivas, baseadas em representações míticas, no caso do segundo.
Na sua primeira viagem, em maio de 1927, Mário tinha apenas o intuito de conhecer o Brasil, sem se centrar em uma pesquisa roteirizada e sistematizada. Na ocasião, ele observou danças dramáticas da região Norte. Já na segunda, entre dezembro de 1928 e março de 1929, seus estudos se mostraram mais detalhados, incluindo a recriação de lendas e seus alargamentos – independentemente da fidelidade à narrativa original – com a intenção de estabelecer uma síntese nacional, por meio de pesquisas sobre a etnografia e o folclore no Brasil.
Oriundo da língua inglesa, o termo folklore – formado por folk, que significa povo e lore, cuja acepção principal é conhecimento – aponta um saber geralmente transmitido de geração para geração, sobretudo por meio da oralidade, eximindo-se, portanto, de um registro escrito mais formalizado, isto é, etnográfico (com descrições da cultura material de um determinado povo).
O projeto estético e ideológico do Modernismo – principal corrente artística do século XX no Ocidente e encabeçada por Mário e Oswald de Andrade no Brasil – incluía a reconstrução de uma identidade nacional, seja por meio da paródia de obras e situações previamente criadas ou mesmo pela incorporação de aspectos alheios à cultura do País, como Oswald de Andrade (1890-1954) sugere em seu Manifesto Antropofágico (1928). Ao mesmo tempo que retoma aspectos cultivados pelos nativos, desde o Carnaval até o contraste com “as sublimações antagônicas, trazidas nas caravelas”, Oswald incorpora – ainda que critique aquilo que remete à burguesia europeia em oposição ao nacional moderno – o que veio junto com a chegada dos estrangeiros: “só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente”.
As extensões geográficas e culturais do Brasil impedem uma síntese totalizante da cultura brasileira, uma vez que, desde a existência dos nativos, mais tarde entrecortada pela vinda de europeus, africanos e asiáticos, os encontros e desencontros de uma diversidade enorme de etnias, gêneros, religiões e nações ocuparam as manifestações artísticas, refletindo como a diferença e a contradição são intrínsecas à condição de ser brasileiro ou viver no País.
Uma das preocupações de Mário era evidenciar a cultura popular que ainda não havia sido registrada – por estar distante das instituições que pesquisam, estimulam e patrocinam as manifestações artísticas e por não ser reconhecida pelo grupo socialmente dominante, que não se identifica com as narrativas e representações que compõem a interpretação do mundo por parte de outros indivíduos. Estes, como não fazem parte do grupo superior na hierarquia estabelecida socialmente, constroem sua singularidade a partir das manifestações e dos sentimentos coletivos.
A contribuição de Mário com suas pesquisas, assim, reside não apenas em trazer à luz manifestações típicas como os rituais de Ogum e a dança do Maracatu, mas em mostrar como esses elementos são constitutivos da população brasileira que, tanto em sua profundidade identitária como em sua amplitude geográfica, é desigual e diversa.
Mesmo que em nossa sociedade o registro físico seja relativamente valorizado, é essencial enxergarmos as manifestações artístico-culturais para além do valor monetário atribuído a elas, não apenas refletindo aquilo que vivemos, porém apresentando uma realidade distinta da nossa, para que possamos entrar em contato com o outro e sua forma de ver, construir e experienciar o mundo.
+Para saber mais:
ANDRADE, Oswald de. “Manifesto Antropófago”. In: _________. Manifesto Antropófago e outros textos. São Paulo: Penguin-Companhia, 2017.
LOPEZ, Telê Ancona. “O verde folclore”. In: __________. Mário e Andrade: Ramais e Caminho. São Paulo: Duas Cidades, 1972.
Texto: João Vitor Guimarães
Revisão: Paulo Vinício de Brito
Ilustração: Beatriz Vecchia
*Publicado em 7 de dezembro de 2018