CCSP Dança em Diálogo – Escrever em dança: deslocar o olhar – 2º Ciclo

Escrever em dança: deslocar o olhar é a atual edição do CCSP Dança em Diálogo que, em 2017, tem como foco a dança programada no Centro Cultural São Paulo, sendo analisada pelos integrantes dos encontros (abril a outubro). Como resultado teremos resenhas autorais, que avaliadas e problematizadas pela curadoria – somente em aspectos técnicos da linguagem e de sua clareza – são aqui difundidas. Ao final do programa, pretende-se ver tecida uma rede de vozes e olhares, cada um deles de responsabilidade de cada autor, mediante uma proposta de análise, debate, escrita e difusão sobre dança, descolonizando-se abordagens mediantes discursos diversos sobre a arte, seus contextos, história e contemporaneidade. Mais informações: dancaccsp@gmail.com

Maio: 2º Ciclo: EDUCAR ? DANÇAR ? PRODUZIR | Como? Para quem?
Resenhas sobre as ações da 12ª Edição do projeto ABCDança
Centro Cultural São Paulo – maio de 2017

*As resenhas publicadas são de inteira responsabilidade de seus autores, expressando exclusivamente as suas opiniões.

**Próximos ciclos:
Agosto: 3º Ciclo: PESQUISAR ? EXPERIMENTAR ? CRIAR | O quê? Para quem?
Setembro: 4º Ciclo: CCSP SEMANAS DE DANÇA 2017 | O quê? Como? Para quem?
Outubro: 5º Ciclo: ANALISAR ? CRITICAR ? ESCREVER |O quê? Como? Para quem?

Mostra Ivonice Satie, por Jonathas Leite

(Natural de Alagoas, é artista da dança, intérprete-criador e graduado no curso licenciatura em dança pela Universidade Federal de Alagoas)

O projeto ABCDança, agora em sua 12ª edição, é uma iniciativa da Associação Projeto Brasileiro de Dança com apoio do ProAC (Festivais de Artes) da Secretaria do Estado da Cultura São Paulo, do Prêmio FUNARTE de Dança Klauss Vianna, das prefeituras das cidades envolvidas e das unidades do SESC Santo André e São Caetano do Sul. Com uma programação envolvendo espetáculos, intervenções, cursos, oficinas, fóruns e diálogos, o projeto propõe fomentar o encontro de diversos estilos em dança no ABCD e na capital paulista.

A Mostra Ivonice Satie surge em 2017 como uma resposta à necessidade de ampliar a visibilidade dos artistas atuantes ano após ano no projeto ABCDança, e chegou à capital entre 26 e 28 de maio, no Espaço Flávio Império e na Sala Adoniran Barbosa do Centro Cultural São Paulo. O nome da mostra faz homenagem a Ivonice Satie, uma das grandes figuras incentivadoras da dança no Brasil, e afirma seu interesse de proporcionar a acessibilidade e universalidade dessa linguagem.

No Espaço Flávio Império (foyer) do CCSP, a plateia assistiu à coreografia “Marcas Da Passagem” do Núcleo Bambu, de Diadema. Dentro e fora do um círculo de arame farpado envolvido por rosas coloridas, três intérpretes-criadores se entregaram às marcas que nos são comuns e nos atravessam ao longo da existência, e através das quais é possível sentir a simplicidade no movimento, ao mesmo tempo em que a dramaticidade exala dos corpos.

O figurino, com tonalidades em bege, marrom e com rendas, remete à população que vive no sertão árido do nordeste – um povo marcado pela seca que não ameniza com a água da chuva, e mesmo assim, sobrevive da esperança de dias melhores. Entre entradas e saídas no círculo de arame farpado com rosas, uma muralha se ergue ao longo da espetáculo, muralha essa que pode ser erguida pelos amores ou desamores, pelas frustrações ou conquistas, pelos encontros ou desencontros, pelas doenças ou curas, pelas vindas ou partidas. Uma movimentação que revezava entre o forte / fraco, direto / indireto, acelerado / desacelerado, revelando aos que assistiam a pluralidade e versatilidade de corpos em cena, sendo atravessados pelas marcas que passam ou ficam.

O som ao vivo, conduzido por um baterista e violonista é inundado pelo texto falado dos intérpretes: “Eu habito no silêncio das memórias, que habitam em meu corpo. Sinto, recinto, sinto”, a fala, aliada ao movimento, aguça ainda mais as percepções e sensações de quem estava em volta apreciando os corpos que dançavam. Ao final da apresentação, uma momentânea conclusão: as marcas são essenciais na formação do indivíduo, podendo passar com o tempo ou não, e em muitos casos o tempo não basta, porque elas são arquivos quase que eternos de nossa memória.

Na Sala Adoniran Barbosa deu-se prosseguimento à mostra com o espetáculo “Conectados” do Favela’s Funkers / Black White Crew, de Diadema. É interessante encontrar grupos de danças urbanas em mostras ou festivais de dança, num formato de palco tradicional, por saber do aspecto comum na construção dessas danças, que normalmente se dá com a platéia ao redor, num círculo, ampliando as percepções / sensações, instigando os que no meio dançam. Outro fato interessante é observar assuntos contemporâneos e elaborados na composição de trabalhos urbanos, nos permitindo novos olhares, pois, embora a tecnologia exista para todos e todas, a depender da localidade essa mesma tecnologia pode ter fins diferentes. O figurino despojado, muito comum dentro da Cultura Hip Hop, e a utilização dos objetos cênicos, como a mochila e principalmente o celular, junto com a iluminação, dialogaram e contribuíram para um bom desempenho da proposta como um todo.

É nítida a proposta do trio: expressar a dependência que a sociedade atual tem com a tecnologia. Mas, acreditando que os dançarinos são potencialmente talentosos e crendo que o trabalho de composição coreográfica pode ultrapassar as fronteiras, espera-se mais intenção e intensidade de alguns movimentos. Em determinados momentos a movimentação parecia ser feita de maneira mecânica e não orgânica, uma investigação maior no movimento, visto que esse tema não é novo em mostras de dança, talvez fosse o caminho a ser percorrido, assim como um mergulho nos conceitos de hibridização e hibridismo, que já é muito comum dentro das danças urbanas, como se vê em outros grupos que são referências do corpo híbrido, conseguindo dialogar e propor novos rumos, como a Cia Urbana de Dança do Rio de Janeiro e os Zumb.Boys, de São Paulo.

A terceira coreografia apresentada foi “No Tempo Com Tempo” da Associação Passo a Passo também de Diadema, que volta no tempo, revisitando determinadas características de movimento de figuras que compõem a história da dança: Maurice Bejart, Vaslav Nijinski, Isadora Duncan e Pina Bausch. O tema agrada o público, porque de alguma maneira os aproxima dos artistas promovendo ainda mais reconhecimento de seus talentos e dos trabalhos dessas figuras da dança.

Embora o trabalho fosse uma releitura da vida em arte dessas figuras, e não uma remontagem de coreografias assinadas por elas, fez falta no solo e no figurino sobre Vaslav Nijinsky algo que remetesse a platéia à sua época e característica de seu trabalho revolucionário. As quatro coreografias exploraram o virtuosismo, virtuose essa que é quebrada quando uma dançarina, num solo com sapatilhas de ponta, transcende a verticalidade abandonando as sapatilhas e cedendo à liberdade, procedimento comum na dança de Isadora Duncan. O conjunto finaliza o trabalho utilizando a dramaticidade que Pina Bausch deu ao balé “Sagração da Primavera” pela dança-teatro.

A Mostra Ivonice Satie terminou com “Êxodo” da Dias e Cia., de São Caetano do Sul. Durante a coreografia obverva-se que a companhia explora exaustivamente com dinâmica, lateralidade e pluralidade os desenhos coreográficos na cena. Pode-se questionar que êxodo os integrantes da companhia expressam. Seria de fato algum êxodo atual, ou apenas uma metáfora? No cenário, com um fundo de palco retangular, de tecido formado por peças retangulares coloridas, que enfatiza a diversidade dentro da obra e possivelmente dentro de uma determinada população.

A musicalidade, ora tensa, ora frenética remete às múltiplas sensações que é possível sentir quando nos deslocamos de um lugar de origem para um lugar desconhecido. Pode-se perceber um fluxo contínuo de movimento dentro da coreografia, com várias possibilidades de encontros, desencontros e reencontros, não necessariamente nessa ordem. O figurino exalta bem as diferenças existentes em qualquer coletivo, que podem ou não ter objetivos comuns no percurso desse trajeto.

Sair de um determinado local para outro requer coragem, mesmo em meio às incertezas, vemos na coreografia momentos de determinação e convicção. Toda mudança requer foco, o olhar para o horizonte é fundamental, o importante é não baixar a cabeça, nem olhar para trás e os integrantes desempenham com maestria essa intenção.

É notória a qualidade da técnica do jazz dance nos corpos, assim como da dança clássica. São nítidas também as explosões nos movimentos nos braços e pernas, o tronco e o quadril falam pelo sinuoso, a respiração é conduzida pelo swing do jazz. Vale apenas ressaltar a presença de palco dos dançarinos, que se entregaram no trajeto desse êxodo.

Art Project BORA, por Jonathas Leite

(Natural de Alagoas, é artista da dança, intérprete-criador e graduado no curso licenciatura em dança pela Universidade Federal de Alagoas)

A 12ª edição do projeto ABCDança continuou nos dias 27 e 28 de maio na Sala Jardel Filho do Centro Cultural São Paulo com os espetáculos “Gaksi” e “Tail Language” do Art Project BORA de Seul / Coreia do Sul. Ambos os espetáculos surpreendem pela expressividade, autenticidade e vivacidade em cena.

“Gaksi” foi concebido com a finalidade de satirizar a situação da mulher, não apenas a asiática, mas ao redor do mundo, que aprende desde pequena que sua utilidade no casamento é o serviço e a submissão. Kin, como intérprete-criadora trouxe por meio do seu corpo essa herança feminina, porém, propondo através da contemporaneidade uma possível quebra desses paradigmas por meio do uso do cômico em sua movimentação. Vemos uma mulher que ainda se submete a servir seu marido, mas agora mais dona de si, conseguindo rir desse estado de submissão, e inclusive de si mesma, procurando, pelo caminho da sátira, um rumo para não se abater e, principalmente, não sucumbir.

Já “Tail Language” trata das maneiras como os animais se comunicam entre si. Animais aqui incluindo o homem, porque vemos em cena corpos que são ora animal irracional, ora animal racional, ora ambos. Os sobretudos do figurino servem inicialmente de vestuário para os dançarinos, e, com o passar da cena, são transformados em abrigo para os demais seres vivos, sendo também um abrigo para os seres humanos.

A sonoplastia nos joga numa floresta sem proteção alguma, quase podemos ver árvores enormes no palco, ao mesmo tempo em que o figurino aparentemente simples em tonalidades de bege, preto e branco nos transporta para uma avenida movimentada numa metrópole, uma selva de pedra. Além desses detalhes que compõem a cena, a movimentação dos dançarinos envolve pela plasticidade, sutileza e controle nos movimentos, sem que eles percam em nenhum momento a presença e, enfim, a vida.

Ambos espetáculos além de fazer refletir sobre aspectos pertinentes ao cotidiano da sociedade, como as inter-relações e seus conflitos, despertam para a superficialidade no ser e existir na idade contemporânea, uma crítica à maneira como estamos vivendo e convivendo dentro e fora de nós mesmos. Uma crítica à ilusão dessa evolução humana que ouvimos diariamente, nos fazendo frequentemente ir sem saber para onde, apenas seguindo o fluxo. Uma crítica ao tempo desperdiçado em busca da materialidade para alimentar o ego, a soberba e individualismo aflorado e inflamável.

Dois espetáculos de dança que colocam em cheque essa sociedade que se diz contemporânea, mas que se comporta como uma sociedade primitiva, incapaz de refletir sobre eus atos e mudar trajetos pelo o bem do coletivo. Sociedade sem freio, equilíbrio e aparentemente sem rumo.

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