Cadernos Negros: a literatura nacional como difusão de consciência


É certo que a herança de uma abolição mal resolvida ainda opera mazelas em nosso país; porém, tão importante quanto salientar a existência desse apagamento é valorizar os movimentos de resistência que buscavam reafirmar sua cultura e construir uma realidade mais coletiva e abrangente. No Brasil, não importa qual seja o período histórico, o preconceito racial jamais foi recebido de forma passiva pela população preta, essa que é numericamente a mais populosa do país; neste texto falaremos da manifestação cultural de resistência em uma série literária intitulada Cadernos Negros, iniciativa contrarresposta à inércia de exclusão racial no Brasil.

Cadernos Negros é uma série literária independente que veicula textos afro-brasileiros. Concebida por jovens estudantes que acreditavam no poder de conscientização, sensibilização e acolhimento da literatura, a série veicula até hoje, na poesia e na prosa, a possibilidade de expressar e promover a produção cultural e intelectual contemporânea, concebida e escrita por literatas pretos brasileiros.

Os Cadernos foram concebidos durante os anos 1970, contexto no qual efervesciam movimentos de autoafirmação da população negra. Nete período, junto às emancipações de Angola e Moçambique da condição de colônias europeias, havia movimentos como o Black Panthers, Black is beautiful e a Imprensa Negra Paulista, além do ecoar do ativismo de Lélia Gonzalez, Abdias do Nascimento, Rosa Parks e Nelson Mandela. Como diversas marés confluindo para um mesmo sentido, uma onda de luta pela equidade de direitos se espalhava pelo globo difundindo consciência, complexificando o debate e incentivando o combate à discriminação racial.

No Brasil, esse fator combativo foi intensificado pelo acesso da população negra às universidades. O furor do surgimento de novas entidades de ensino superior viabilizou o ingresso, mesmo que tímido, das pessoas pretas em espaços de formação cultural e de ensino. Entre esses estudantes estava o escritor Cuti, então aluno do curso de Letras da USP.

O que se apresentou como oportunidade foi, para Cuti e seus colegas, uma experiência de desencanto: o curso de Letras não contemplava a cultura afro-brasileira; não bastasse, textos literários de viés afro-brasileiro não eram bem recebidos nem pelos colegas nem pelas editoras; só interessavam autores já consolidados pelo cânone literário ou personagens delineadas de acordo com estereótipos racistas, já conhecidos. A área das Letras se mostrou mais um ambiente de exclusão, terra infrutífera para o cultivo de uma literatura afro-brasileira contemporânea.

Profundamente incomodado, Cuti se junta a seus colegas, que partilhavam de uma mesma sensação de deslocamento, para questionar o pouco prestígio da literatura afro-brasileira no Brasil. O grupo, que posteriormente se denominou Quilombhoje[1], passou a desenvolver debates que promoviam consciência sobre o apagamento da figura do negro[2] e sua representação distorcida nos discursos literários: como, afinal, poderia a maioria da população brasileira se identificar com as personagens do próprio país se os livros conhecidos traziam figuras e narrativas toscas, superficiais? E como combater esse distanciamento e essa intimidação num cenário excludente, onde não interessava que as questões fossem discutidas ou publicadas?

Como resposta a essa exclusão, Cuti se alia a Hugo Ferreira, seu colega, e estes concebem o primeiro conceito dos Cadernos: uma publicação independente de antologias com a temática do “ser negro no Brasil”; um espaço de expressão em que coubessem os sonhos, as mazelas e as histórias da população negra. A dupla se une a outros sete autores-estudantes[3] e juntos financiam a primeira edição do projeto.

“Cadernos Negros é a viva imagem da África em nosso continente. É a Diáspora Negra dizendo que sobreviveu e sobreviverá, superando as cicatrizes que assinalaram sua dramática trajetória, trazendo em suas mãos o livro.” Neste trecho da primeira edição, publicada em 1978, Cuti também apresenta a missão das publicações: “Hoje nos juntamos como companheiros nesse trabalho de levar adiante as sementes da consciência para a verdadeira democracia racial”.

A série de livros dribla a cultura de exclusão editorial, financiando coletivamente esse que é um dos espaços pioneiros de oportunidade literária verdadeiramente democrático para jovens escritores negros. Até hoje, o Quilombhoje é comprometido com a divulgação de uma literatura séria, vinculada à realidade nacional e que promova uma mundividência na qual o negro se coloca no mundo com sua cultura concreta e um ponto de vista são. Os Cadernos não só acolhem textos de escritores iniciantes como os incentivam, até hoje, a escrever e consumir essa literatura em particular – a exemplo de Conceição Evaristo, escritora e pesquisadora mineira que encontrou nos Cadernos a possibilidade de divulgar seu trabalho.

Ficção e realidade se misturam na literatura, que veicula a emoção e promover reflexões, das mais profundas às mais sutis, aos seus leitores; mas é no encontro entre a realidade e a ficção que a literatura escancara realidades escondidas e ousa criar imaginários possíveis. Os pontos de vista trazidos em textos literários, cunhados cuidadosamente por um(a) autor(a) que pesa cada palavra, extrapolam as barreiras do tempo para seguir transformando, de uma maneira ou de outra, o interior de seus leitores e a sociedade ao redor. Os Cadernos Negros seguem vivos até hoje, promovendo uma literatura consistente de ótica negra e contemporânea, e seus volumes anuais alternam o gênero literário a cada ano – nos anos pares são publicados poemas e, nos anos ímpares, contos -, sempre tratando com sinceridade e intensidade de uma escrita viva, pulsante, que extrapola a inércia do cânone literário para pensar e construir coletivamente o que significa ser negro no Brasil.

 

Alguns exemplares da série encontram-se disponíveis para leitura na biblioteca do CCSP, incluindo a primeira edição e uma seleção à parte, de dois volumes (“Os Melhores Poemas” e “Os Melhores Contos”), que foi traduzida para o inglês. Clique aqui para consultar os livros dos autores citados no texto disponíveis nas Bibliotecas do CCSP

Notas:

[1] Ao longo do tempo, o Quilombhoje ficou mais conhecido pelo trabalho com a série Cadernos Negros, mas segue promovendo outras atividades para aprofundar a experiência do público afro-brasileiro na literatura. Conheça em: https://www.quilombhoje.com.br/site/

[2] Um vislumbre dessa discussão é elaborado por Conceição Evaristo no artigo “Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade”. Segundo a autora, há uma diferença discursiva entre os escritores do cânone literário e os escritores afro-brasileiros que está, sobretudo, nas temáticas e na representação da figura do negro na literatura. Nas obras canônicas há uma representação pautada no preconceito, onde a figura do negro é etérea e secundária, colocada a serviço da mentalidade nacional. Por outro lado, na literatura afro-brasileira o discurso aparece embebido de uma subjetividade negra, para usar as palavras da autora, construída a partir da vivência de negros e negras no cotidiano brasileiro, da vivência em sua materialidade.

[3] Ângela Lopes Galvão, Célia Aparecida Pereira, Eduardo de Oliveira, Henrique Cunha Júnior, Hugo Ferreira (que sugeriu o nome da série), Jamu Minka e Oswaldo de Camargo.

+Saiba mais:

Acesse o site do Grupo Quilombhoje de Literatura Afro-Contemporânea: https://www.quilombhoje.com.br/site/

Conheça a história e as personalidades por trás dos Cadernos Negros: https://www.quilombhoje.com.br/site/cadernos-negros/

Conheça a estreia literária de Conceição Evaristo na série Cadernos Negros: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/188-conceicao-evaristo

Ouça a entrevista que Cuti realizou em 05/1980 nos Acervo Multimeios do CCSP.

Leia as edições de Cadernos Negros nas Bibliotecas do Centro Cultural ou na biblioteca pública mais próxima de você.

 

Texto: Isabela Pretti Nogueira
Revisão: Paulo Vinício de Brito
Ilustração: Marina Ester

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