Tudo está na natureza
encadeado e em movimento –
cuspe, veneno, tristeza,
carne, moinho, lamento.
misture cada elemento –
(…)
você terá um unguento,
uma baba, grossa e escura,
essência do meu tormento
e molho de uma fritura
de paladar violento
que, engolindo, a criatura
repara o meu sofrimento
co’a morte, lenta e segura.”
Escrita por Chico Buarque e Paulo Pontes, a peça Gota D’Água (1975) se baseia na clássica tragédia grega Medeia, de Eurípedes, para contar a história de Joana, uma mulher que mora com seus dois filhos no Conjunto Habitacional Vila do Meio-Dia, no Rio de Janeiro, durante a década de 1970. Lá, Joana e seus filhos estão prestes a serem despejados pelo dono da propriedade, enquanto Jasão, seu ex-marido, prepara-se para o casamento com Alma, filha do proprietário dessa vila, Creonte. Assim a estrutura dialética da peça se equilibra entre a proteção e a destruição da família, o discernimento e o desentendimento do meio complexo em que este grupo de pessoas vive, a presença e a ausência de intervenções externas e elevadas – como os deuses –, particularizando, no caso do Brasil, as questões levantadas pelos poetas (“dramaturgos”) gregos.
Como forma de escapar da censura exercida pelo governo militar brasileiro da época, a peça foi tanto publicada quanto encenada pela primeira vez no mesmo ano, em 1975, em um contexto no qual eram evidentes o afastamento social cada vez mais acentuado entre a elite e o povo e o prejuízo que ambos tinham com a contração de dívidas externas pelo governo em prol do então chamado “milagre econômico” (1968-1973). Com isso o conteúdo da peça se concentra em tensões entre o individual e o coletivo – personagens particulares e coro; e o trágico e o cômico – no enredo catártico e, ao mesmo tempo, relacionado ao cotidiano – atravessam toda a forma da peça, que dinamiza os versos e transforma-os em uma expressão fiel e elevada da vida no Brasil.
Tanto no lançamento do livro quanto na estreia da peça, Gota D’Água não sofreu qualquer tipo de censura, uma vez que não criticava diretamente os militares, sugerindo apenas a proeminência da classe mais favorecida – representada por Alma e, principalmente, por seu pai, Creonte – diante de Joana, das lavadeiras e dos moradores do Conjunto Habitacional como um todo. Jasão abre mão da vida com Joana e seus dois filhos e justifica esse abandono com o sucesso que o investimento de Creonte pode trazer para sua carreira de sambista. Assim, a peça foge de um simples maniqueísmo e traça a evolução das personagens por meio das motivações de cada uma, da ambição ao cuidado, passando por dilemas humanos atemporais registrados na Grécia Antiga.
Na década de 1970, Paulo Pontes tinha a intenção de resgatar o projeto cultural nacional-popular iniciado com um engajamento concentrado na figura de Oduvaldo Vianna Filho [Vianinha (1936-1974)], que havia morrido pouco tempo antes e foi quem primeiro teve a ideia de adaptar o texto de Eurípedes para o contexto brasileiro da época – naquele momento, não para o teatro, mas para um especial da Rede Globo. Assim, Paulo Pontes, casado, na época, com a atriz, cantora, diretora e compositora Bibi Ferreira (1922-2019), convidou Chico Buarque para efetivar as ideias de Vianinha e apresentar a forma como os contrastes sociais, morais e culturais se acentuavam naquele período.
Para Paulo Pontes, “a cultura da elite nunca foi capaz de penetrar profundamente até as bases da sociedade nem foi capaz de assimilar valores da cultura popular, fundamentalmente porque a economia brasileira, que se desenvolveu sempre num quadro de dependência, em nenhum momento foi capaz de incluir, ativamente, em seu processo, as amplas camadas inferiores da população”.
Desde sua primeira edição, o livro com o roteiro da peça – que pode ser encontrado no acervo da Biblioteca Sérgio Milliet – contava ainda com um prefácio escrito pelo próprio Paulo Pontes, no qual o autor destacava a tensão entre a estreita racionalidade do conteúdo e a amplitude da palavra na forma da peça, composta em versos, apoiando-se na ideia de grandeza que o uso do verso sugere tanto nas tragédias gregas antigas quanto em dramas expressionistas modernos como aqueles escritos pelo alemão Bertolt Brecht (1898-1956), nos quais o distanciamento – a retirada de elementos que parecem óbvios para a construção da peça, a fim de lançar espanto e curiosidade no público a respeito deles.
Na montagem original, as quatro canções principais eram cantadas pela própria Bibi Ferreira (Basta um Dia, Bem Querer, Veneno e Gota D’Água) em uma das mais elogiadas performances brasileiras já feitas, sendo que o vocal das outras músicas contava com o elenco geral, em um paralelo com o tradicional coro presente em praticamente todas as tragédias da Grécia Antiga – incumbido de explicitar o conflito principal e refletir sobre as condições sob as quais os protagonistas se encontram.
Já, na atualização, Gota D’Água Preta (apresentada no Itaú Cultural e no Centro Cultural São Paulo em 2019), dirigida e produzida por Jé Oliveira, a atriz Juçara Marçal vive Joana, sendo esta a primeira adaptação da peça com um elenco inteiramente composto de atrizes e atores negros. Para o diretor, “infelizmente, esta peça, de 50 anos atrás, ainda diz muito sobre a nossa tragédia brasileira cotidiana. No meu entender, faltava uma abordagem racial dela. Então resolvi montar Gota D’Água Preta para suprir essa carência racial que a peça propõe, mas que não tinha sido efetivada ainda. Cheguei a esse texto por causa do meu contato prévio com o rap e com o fato de a peça ser rimada. Isso me chamou muito a atenção. Eu trabalho com música há um certo tempo – na minha pesquisa pessoal, o rap está sempre presente – e o coletivo negro junta as pesquisas de teatro e de música. O rap vem como pensamento de sampler e de mixagem, como linguagem e como diálogo, na intenção de recuperar e atualizar a função e a potência políticas que a MPB ‘clássica’ exercia com maestria em plena ditadura. Nós tentamos sair um pouco da questão passional/amorosa, que é muito importante, mas que é uma metáfora de uma traição de classe e de raça, então o rap cumpre muito facilmente essa função política que a peça pede. Aproximamos o texto da questão racial e potencializamos a questão feminina, fazendo seu conteúdo ganhar outras camadas.”
Tão importante para o desenvolvimento da peça original quanto para a montagem de 2019, a incorporação de características da cultura brasileira – do samba produzido por Jasão à feitiçaria de Joana, que remete ao candomblé brasileiro – corrobora a preocupação de Paulo Pontes de resgatar uma integração cultural de forma fragmentada – na religião, na política, na música e em outras áreas da cultura popular – e, portanto, moderna, influenciada pelas vanguardas modernistas do começo do século 20 e revisitada pelo Tropicalismo nos anos 1960.
Outras montagens marcantes do espetáculo foram realizadas pela atriz Georgette Fadel no ano de 2006, sob o título Gota D’Água – Breviário, e por Laila Garin, em 2017, chamada de Gota D’Água [A Seco], com propostas que, no primeiro caso, priorizavam a musicalidade e a coloquialidade do texto, enxugando metade dos diálogos e, no segundo, se centralizavam no embate entre Joana e Jasão, além de inserir outras músicas de Chico Buarque não incluídas na peça original.
De forma geral, a tragédia de Joana não está exatamente na execução do crime que acaba com sua família, mas na percepção que ela tem de sua circunstância de heroína trágica, concluindo que esse crime é, para a protagonista, a única forma de chamar a atenção para suas condições de vida precárias e desprezadas por todos ao seu redor.
Ainda hoje, tanto o texto original como as novas adaptações questionam a complexidade da vida urbana, o desequilíbrio presente nas relações humanas, mediadas por uma ambição e uma corrupção desenfreáveis, e a tensão gerada pela onipresente luta de classes, cada vez mais acirrada e inconciliável, em que a possível “resolução” apresentada pelo texto pressupõe a retirada de uma das partes envolvidas, exigindo, portanto, que metade do copo se esvazie para que a outra permaneça cheia.
BUARQUE, Chico; PONTES, Paulo. Gota D’Água. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.
MARINHO, Cecília Silva Furquim. Gota D’Água: entre o mito e o anonimato. São Paulo: 2013.
Texto: João Vitor Guimarães
Colaboração: Jé Oliveira (diretor e produtor de Gota D’Água Preta)
Entrevista: Márcia Dutra e João Vitor Guimarães
Revisão: Paulo Vinício de Brito
*Publicado em: 20 de março de 2019